Cláudia Abreu
São Paulo – Os olhares mais desavisados podem estranhar o colorido dos pastos da Fazenda do Ipê, em Canela, no Rio Grande do Sul. Além do verde da mata, preservada pela proprietária, Liciê Hunsche, ovelhas de diversas cores: pretas, marrons escuras e claras, azuis escuras, beges e rosadas caminham tranqüilamente na propriedade. Trata-se dos animais da raça karakul, naturais do Oriente Médio, trazidos por Liciê ao Brasil no início da década de 80 com um objetivo: terem suas lãs usadas na tecelagem de tapetes, mantas e outras peças de vestuário.
Liciê foi a segunda fazendeira a importar os animais no país. O primeiro foi o político gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil. Em 1917, ele trouxe da Argentina para o Rio Grande do Sul algumas matrizes da raça. A criação, no entanto, não se desenvolveu, até que, em 1981, Liciê, decidida a usar a lã da karakul para a tecelagem, viajou para a Europa e comprou, de criadores da Áustria e da Alemanha, um lote de animais.
A idéia surgiu depois que a pecuarista fez uma pesquisa sobre a fabricação dos tapetes persas. "Desde criança, tenho paixão por esses tapetes, me lembro, até hoje, de vendedores estendendo as peças para o meu pai escolher. As cores eram lindas. Comentei isso com uma amiga, ela me disse que a cor era natural, que a lã era colorida, não se usava corante. Então, pesquisei qual raça tinha a lã colorida, encontrei a karakul", conta Liciê. O animal tem 17 tons de cores: do preto, tons azulados, cinzas, passa pelo marrom – claro e escuro – bege e rosado.
Segundo o veterinário Eduardo Amato Bernhard, que cuida do rebanho de Liciê, os animais karakul são, provavelmente, uma das raças mais antigas entre os ovinos domésticos. "Tudo indica que a sua origem é no Oriente Médio, eles viviam com as tribos nômades. Esculturas desse cordeiro foram encontradas em templos da Antiga Babilônia – hoje parte do Iraque", explica. De acordo com estudos arqueológicos, a existência de peles da raça karakul data do ano de 1.400 a.C (antes de Cristo).
No Brasil
Apesar de ser originária do deserto, que tem temperaturas extremas – calor intenso durante o dia e frio a noite – a raça se adaptou bem ao clima brasileiro. "Um dos únicos problemas que o animal sofre por aqui é com os cascos que, por causa da umidade da região (Serra Gaúcha), ficam mais suscetíveis às doenças. Mas dá para controlar perfeitamente", afirma o veterinário.
Prova disso é que a procura pela ovelha karakul tem aumentado muito nos últimos anos. "Recebemos entre 10 e 20 pedidos de animais por mês, mas não conseguimos atender essa demanda, precisamos aumentar a criação", explica Bernhard. O preço varia de acordo com o sexo e a finalidade. Os machos comuns custam R$ 500, as fêmeas R$ 200. Os para procriação, com registro, custam mais: machos são vendidos a R$ 1,5 mil e fêmeas a R$ 1 mil.
O rebanho brasileiro tem, atualmente, cerca de 3.500 cabeças, a maioria – 80% – está no Rio Grande do Sul. O restante está dividido entre criadores de Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais e de estados do Nordeste. Cento e catorze pecuaristas criam a raça no país, segundo dados da Associação Brasileira de Criadores de Karakul.
Liciê, além de pioneira na organização da karakul no Brasil, é uma das maiores criadoras, tem 300 animais, 70 deles com registro de puro de origem. Diferentemente de muitos pecuaristas, que usam também a carne do karakul, ela se concentrou apenas na tecelagem. Para conseguir a tão desejada lã colorida, tosquia os animais duas vezes por ano. "Essa é outra particularidade da criação no Brasil. Por causa das chuvas, é melhor cortar a lã duas vezes para ter um melhor aproveitamento", explica Bernhard.
Depois de retirada do animal, a lã é levada para o ateliê de Liciê, nas margens do rio Guaíba, em Porto Alegre. Lá, o trabalho é todo artesanal. Primeiro a lã é lavada, depois desembaraçada com pentes de ferro. É o processo de cardagem. Os novelos são montados na seqüência, na antiga roca de fiar e, então, começa a fase de tecelagem.
As máquinas são da época pré-industrial, mas isso não importa. O resultado é que impressiona. Cores que, muitas vezes, não aparecem no pasto, podem surgir na hora de trançar os fios. "O rosa, por exemplo, pode ser difícil de ser visto a olho nu, mas no tear ele vive", afirma Liciê.
Bernhard explica que o fenômeno da mudança de cor acontece porque, diferentemente da maioria das raças, o karakul não é todo revestido de lã. A lã é um algodãozinho que fica mais embaixo, representa 35% da cobertura da pele (o velo). "O restante, que vem por cima, encobrindo a lã, é pêlo. Cresce com a idade, então, todo animal adulto é meio mouro. Quando isso se mistura à lã, pode dar outra tonalidade ao fio", afirma.
Na origem da raça, o pêlo comprido tinha a função de proteger o karakul contra as tempestades de areia. A orelha grande apontada para baixo, cobrindo o ouvido, tinha a mesma função. Da vivência no deserto, também ficou a cauda mais larga. "O karakul acumula gordura na cauda para as grandes caminhadas, como o camelo. Diferentemente do cupim dos bovinos, a cauda dos ovinos não tem carne, só gordura", explica o veterinário.
Astracã
Além da lã colorida, a raça karakul é conhecida pelo astracã, que é a pele do cordeiro morto imediatamente depois de nascer. "Usar gorros feitos com o astracã na antiguidade, por exemplo, era um sinal de nobreza", explica a pecuarista.
Para os brasileiro, é estranho abater o animal recém-nascido, mas a prática é tradição na região de Astracã, que era parte do reino mongol e foi conquistada pelos russos. Nessa área, que um dia pertenceu à antiga Pérsia, também fica o lago Karakul, que deu nome aos cordeiros.
"O astracã é extremamente delicado, raro e caro. Os poros onde nascem os pêlos são uniformes, a pele parece uma seda. Um colete pode custar mais de R$ 1 mil", conta Liciê. No Brasil, no entanto, ainda não existe tecnologia para trabalhar esse material.