São Paulo – Foi em frente à casa de reza da aldeia Tenondé Porã, na região de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, que lideranças indígenas brasileiras cumprimentaram uma comitiva de árabes e os convidaram para entrar. Ali, representantes da Fundação Mohammed Bin Rashid Global Initiatives, dos Emirados Árabes Unidos, pisaram pela primeira vez em solo guarani.
Foi com o apoio financeiro dos árabes e do Consulado-Geral dos Emirados Árabes Unidos em São Paulo, que a Federação das Associações Muçulmanas do Brasil (Fambras) entregou dois purificadores de água e um sistema para tratamento de esgoto que vão atender a comunidade indígena. E foram essas obras que reuniram árabes, brasileiros e guaranis no domingo, dia 04 de agosto.
Na tarde mais fria do ano, Parelheiros registrou máxima de 12°C. “Queremos agradecer a visita de vocês, apesar do frio. Para nós, é uma honra recebê-los. Meu nome é Adriano, em guarani é Karai Poty. Estamos aqui na aldeia Tenondé Porã, que dá nome ao território. A gente sempre esteve aqui, escondidinho. A cidade vem crescendo cada dia mais e ela vai engolindo o nosso território, e não o contrário, como muita gente diz. Apesar de estarmos morando em São Paulo, dentro do território, entre nós, só falamos guarani. Todas as crianças, jovens e adultos”, contou Karai, uma das quatro lideranças da aldeia.
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As terras Tenondé Porã abrigam oito aldeias. Quando recebem visitas, os guaranis abrem exceção para conversar em português. Já os emiradenses, conversavam entre si em árabe. Com o apoio de tradutores, e alguma paciência, a língua portuguesa foi usada para conectar visitantes e visitados.
Dentro da casa, as crianças da aldeia cantaram de mãos dadas, e pés que dançavam no mesmo ritmo. Um coral guarani com mais de 100 vozes mirins. “A primeira música fala sobre fazer as coisas juntos”, explicou Karai Poty.
O território reúne 2.500 pessoas em uma história de luta. Jera Guarani, de 38 anos, também é liderança e, em sua fala, agradeceu a presença dos árabes e contou a própria história. “Essa é a casa de reza, onde o pessoal da aldeia se reúne. Vamos falar algo que muitos brasileiros já sabem. Somos originários desse território, mas hoje moramos em pedaços pequenos de um território imenso, que já foi nosso. Depois do Brasil ter sido invadido pelos ‘juruá’, roubaram tudo que era nosso. E aí ficamos muitos anos em áreas muito pequenas”, declarou. ‘Juruá’ em guarani quer dizer “aqueles que tem ‘cabelo na boca’”, é um dos termos que designam os não-indígenas em uma referência aos primeiros europeus que chegaram ao Brasil.
Recuperar território e tradição
Jera se formou em Pedagogia pela Universidade de São Paulo (USP), decidiu retornar à sua aldeia e foi uma das responsáveis pelo aprofundamento das tradições. Em 2008, veio dela a ideia de criar um conselho para trabalho conjunto e, desde então, ela é uma das lideranças internas da aldeia, que reúne 170 famílias. “Há dois anos, abandonei a carreira de pedagoga da aldeia para me tornar agricultora guarani”, explicou ela, sobre outra etapa de seu trabalho.
A lida com a agricultura foi essencial para que eles conseguissem reaver parte de seu território. “Depois de 70 anos vivendo em áreas pequenas, hoje vivemos em quase 16 mil hectares. Podemos hoje dizer, depois de perder muita coisa da nossa cultura, que temos mais de 50 variedades de batata-doce recuperadas em 10 anos”, destacou Jera aos árabes que, com a ajuda da tradução, responderam agradecendo “a calorosa recepção”, a explicação dos líderes, e se dizendo encantados com o canto “bem simpático” das crianças.
Em maio de 2016, uma portaria do Ministério da Justiça sobre a Terra Indígena Tenondé Porã aprovou os limites de quase 16 mil hectares reivindicados pelas lideranças por mais de 30 anos. Com o aumento da área, os indígenas puderam retomar com mais intensidade o plantio de culturas ancestrais. Além das 50 variedades de batata-doce recuperadas, eles cultivam diferentes espécies de milho, mandioca, amendoim e cana-de-açúcar. “Tem todos os tipos que a gente consegue produzir aqui. Aumentou [a produtividade], porque antes, imagina, só 27 hectares e 1.500 pessoas, cada um com sua casinha, não tinha espaço para plantio. Hoje, depois de recuperar nosso território, as novas aldeias que foram se formando têm espaço para plantio. Tem o conselho do território e as regras de uso da terra, se eu quiser fazer plantio em outra aldeia, eu posso”, conta Karai.
Hoje, são 1.200 pessoas só na aldeia principal. E no lugar de um cacique, estão quatro lideranças: duas mulheres e dois homens. “Geralmente, nas aldeias tem o cacique. Aqui é um mundo entre as pessoas, cada um com ideias. E para atender o maior número possível de demandas, achamos melhor organizar desta forma”, explica Karai. “Pode ser quatro homens, ou quatro mulheres. É independente. Não tem essa. Tem que ter o perfil de liderança. Saber conversar com as lideranças de fora. E saber se impor em alguns casos”, destaca.
Índio também tem o direito de mudar
“Mas índio sem cocar pode?”, essa ainda é uma das indagações que os guaranis escutam corriqueiramente. A isso, Jera e Kari respondem com risadas e firmeza. “Uma das funções nossas como líderes, é passar essa visão: assim como o português na época da invasão usava vestimentas diferentes, a gente também tem o direito de mudar. E não foi por uma escolha nossa, fomos obrigados a usar roupa na época da escravidão. Quem eles chamam de jesuítas, foram na verdade os que escravizaram os índios. Primeiro os jesuítas, depois os bandeirantes, que hoje são tratados como heróis dentro da cidade de São Paulo. Tanto que o palácio do governador se chama Palácio dos Bandeirantes. Na história, eles não falam que os bandeirantes e jesuítas massacraram os índios, foram os que escravizaram. Muitos dos povos indígenas hoje não falam suas línguas por causa da proibição da Igreja”, afirma.
Na aldeia, há duas escolas. A Ceci/Ceii Tenondé Porã recebe as crianças indígenas de zero a seis anos e ensina a cultura. “É só tradição. Ensinamos as crianças sobre a época do plantio, a época da caça. Porque tem essas divisões, por exemplo, tem a época que a gente só planta e a época que vivemos mais da caça. Porque tem época do ano que deixamos a terra descansar. Tudo isso a gente ensina para as crianças. Em que fase da lua plantamos, como fazemos controle das espécies para não se misturar. O milho, por exemplo, tem várias espécies e não plantamos tudo no mesmo dia, para não florescer tudo junto”, compartilha Karai.
Para ele, o papel da escola de cultura é importante, mas também é a marca de uma história interrompida. “No meu olhar, é muito bom, mas seria melhor ainda se a gente não dependesse dessa escola. Se conseguíssemos viver da forma como era antigamente, passar os ensinamentos da forma tradicional. Se não tivesse tanta influência de fora”, afirma Karai, lembrando que o ensino tradicional era algo demandado do núcleo familiar. Já a escola estadual, para crianças a partir dos seis anos, tem modo de ensino diferenciado, abrangendo tanto a cultura guarani quanto o ensino não indígena, incluindo alfabetização.
Água e autonomia
O contato com a Fambras ocorreu inicialmente com intermédio da subprefeitura. “Falamos que queríamos ter o contato direto. Sabemos negociar, ouvir e falar, então tivemos os primeiros contatos com eles. É a primeira vez que pessoas dos Emirados vieram à aldeia, mas já recebemos diversos outros turistas, americanos, espanhóis”, contou Karai.
O contato rendeu a doação dos dois purificadores de água, instalados próximos da Unidade Básica de Saúde (UBS) Vera Poty, e do sistema para tratamento de esgoto que irá suprir demanda da escola da estadual, que atende 350 alunos. Ambos estão localizados dentro da aldeia principal.
Na comitiva da Fambras, também esteve o Ibrahim Salem Alalawi, Cônsul-Geral dos Emirados Árabes Unidos em São Paulo, além de duas engenheiras que trabalham na UAE Water AID, ligada à Fundação Mohammed Bin Rashi. Aisha Alnnaimi tem 23 anos e trabalha em projetos que criam soluções para levar água potável a comunidades árabes e de outros países. Em sua primeira visita ao Brasil, ela estava curiosa, e se sentou ao lado da líder guarani Jera para fazer perguntas. “É diferente quando você trabalha com isso, só fica fazendo cálculos. Mas quando você vê uma comunidade real e como eles são beneficiados com as soluções que você encontra, isso muda sua visão. Como você pensa e vê o mundo de uma perspectiva diferente”, contou Alnnaimi, empolgada por ter também oportunidade de provar açaí e guaraná brasileiros, e pelo clima frio, inimaginável para quem vive com temperaturas de até 49°C.
A Tenondé Porã reúne 110 casas construídas com apoio do governo do estado, com o banheiro convencional. “Temos 110 banheiros, que colocam a aldeia em uma realidade de ter focos de esgoto a céu aberto e que poluiu”, explicou Jera. A gerente da UBS, Lucimar Constantino, explica os benefícios das novas obras. “A água hoje é por poço artesiano. Antes tinham menos moradores, maior número de pessoas ocasionou problemas respiratórios, parasitoses e diarreias”, explicou.
Apesar da ajuda recebida agora, Jera explica que a comunidade não quer parar por aí. “A ideia nossa é dispersar mais na grande área que conquistamos, para que tenha água limpa e natural das nascentes”, revelou.
Então, qual a principal demanda, o que os indígenas querem? “Que não vejam os índios como coitados. Ajudar a gente na autonomia, acho que seria uma ajuda mesmo. Lógico que como é uma aldeia muito numerosa, a gente passa dificuldades e necessidades para já. Uma cesta básica é sempre bem-vinda para uma família que está mais necessitada e a gente sempre agradece. Mas acho que trazer um projeto, alguma forma de autonomia dentro das comunidades é uma forma [melhor] de ajudar”, reforça Karai.
Assim como os árabes, que com cliques e mais cliques registraram a terra Tenondé Porã, há outros interessados na visita. Por isso, os guaranis formularam um plano de turismo. “Tivemos várias reuniões do território, com as outras aldeias, para organizar de que forma queremos o turismo. Não recebemos mais do que um ônibus por dia, porque o turista que veio tem que saber para que veio e sair entendendo como funciona a aldeia. A visão do não índio é que a gente tenta desmistificar. Quando ele (o turista) vem, geralmente, acha que vai ver o índio de cocar, pintado, pelado. É a visão que não queremos passar”, explica.
A ideia também é evitar o turismo predatório. “Se recebermos todos os dias visita, em que tempo a natureza vai se recuperar? Em que tempo iríamos praticar as nossas rezas, cantos? A gente iria praticamente viver de turismo e esquecer nossa religião, canto e dança”, concluiu Karai.
Leia mais sobre a visita dos árabes a Parelheiros nesta sexta-feira (09) na ANBA.