Débora Rubin
São Paulo – Ela é francesa, ele é palestino. Ela tem 20 anos. Ele é pai de um jovem de vinte e poucos anos. Ela é filha de argelinos. Ele ficou trinta anos sem pisar em seu país. O que eles têm em comum? Ambos são escritores e são os dois nomes árabes da quarta edição da Flip, Festa Literária Internacional de Parati. Eles são a jovem Faïza Guène e o poeta Mourid Barghouti. Ele é um dos principais palestrantes. Ela estará nos eventos Off Flip, que acontecem paralelamente à festa.
Faïza Guène é pouco conhecida no Brasil. Na França, é uma celebridade graças a seu livro de estréia, "Amanhã, Numa Boa" (Editora Nova Fronteira, 175 páginas, R$ 23), que já vendeu mais de 200 mil exemplares só em seu país. Doria, a personagem principal, é um pouco o alter-ego da autora. Ambas são de origem árabe e nasceram na periferia parisiense. A diferença é que sua personagem tem 15 anos e, em vez de argelina, tem origem marroquina. Faïza faz questão de dizer, em suas entrevistas, que o livro não é sobre a vida dela, embora sua forma de olhar o mundo seja a mesma que a de sua personagem.
Na história, Doria vive só com a mãe, que é faxineira em um motel e sequer sabe ler francês. O pai voltou ao Marrocos em busca de uma nova mulher que lhe desse um filho homem. A sina de ter nascido mulher e, por isso, perder o pai, é um dos motivos de revolta da jovem.
Através de Doria, Faïza critica a sociedade francesa que discrimina os árabes que vivem em seu país. Por outro lado, não gosta da maneira como a mulher é tratada por alguns de seus conterrâneos. Vive a contradição de ser árabe e européia ao mesmo tempo. Doria sofre não só com a discriminação como também com a falta de perspectiva para o futuro, já que o governo francês a trata como uma cidadã de segunda classe. Ainda assim, Faïza consegue fazer uma narrativa leve, inteligente e, apesar de tudo, super otimista.
Faïza Guène vive em Pantin, subúrbio de Paris, com seus pais. Ela foi descoberta por uma professora, aos 14 anos, em uma oficina de artes comunitária. Além do livro, ela já se aventurou pelo universo do documentário. A menina virou figurinha fácil em programas de rádio e TV da França. Chegou a ser chamada de "a verdadeira voz da juventude perdida".
O retrato da Paris que ela traça em seu livro é o mesmo cenário que apareceu nos jornais em novembro de 2005, quando os protestos dos jovens da periferia francesa se transformaram em quebra-quebra e confronto com a polícia. Em uma entrevista ao jornal inglês The Guardian, ela disse que a Paris onde ela vive está a quilômetros de distância da Paris cultural e turística que o mundo conhece. Livros, por exemplo, são raros. E caros. "O meu, em sua primeira edição, custava 18 euros. Se eu não o tivesse escrito, nunca poderia comprá-lo", disse na entrevista.
Mourid Barghouti
O autor do premiado "Eu Vi Ramallah" também trata das minorias, da contradição de ser palestino estando longe de sua terra por mais de trinta anos e, sobretudo, sobre como é ser um eterno exilado. Escrito em 1997, mas lançado no Brasil apenas este ano pela Casa da Palavra (208 páginas, R$ 35), seu livro conta como foi pisar na Palestina depois de tanto tempo. As lembranças de sua infância, dos pais, dos amigos que já morreram. Apesar de ser mais conhecido como poeta, foi com o romance que Barghouti ganhou a Medalha Naguib Mahfouz na categoria literária. Ganhou também o Prêmio Palestina pelo conjunto da obra.
Barghouti nasceu em uma aldeia chamada Deir Ghassana, próxima a Ramallah, onde viveu até os sete anos. Depois, os pais se mudaram para Ramallah em busca de melhor educação para os filhos. Em 1963, ele foi para o Egito onde estudou literatura inglesa na Universidade do Cairo. Em 1967, com a ocupação israelense da Faixa de Gaza e Cisjordânia, ficou impedido de voltar.
Morou um tempo no Kuwait com um tio. Voltou para o Egito, de onde foi deportado por questões políticas em 1977. Viveu 17 anos longe da mulher e do filho, 12 deles em Budapeste. Em 1997, voltou a Ramallah graças a um acordo entre a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), grupo do qual fez parte, e o governo israelense.
Embora tenha se envolvido com questões políticas, o autor gosta de dizer que não faz literatura politizada. "Eu não escrevo sobre sangue, rifles, nação e sequer sobre a palavra Palestina. Ainda assim, faço uma poesia que não poderia ter sido escrita por alguém da Dinamarca. A dor que temos dentro da gente aparece até mesmo quando se escreve sobre uma floresta ou sobre uma flor", define Barghouti.
A confirmação de suas palavras está neste trecho do livro: "Finalmente! Aqui estou eu atravessando com minha maleta a ponte, que nada mais é que alguns metros de madeira e 30 anos de exílio. Como pode esse pedaço escuro de madeira distanciar uma comunidade inteira de seus sonhos?".
Flip
A quarta edição da Festa Literária Internacional de Parati acontece entre 9 a 13 de agosto. Este ano, o autor brasileiro a ser homenageado é o baiano Jorge Amado (1912-2001). Criada em 2003, a feira se tornou uma das mais importantes do mundo e já trouxe grandes nomes da literatura universal como Salman Rushdie e Ian McEwan. Durante os dias do evento, as ruas estreitas da pequena Parati, cidade litorânea que fica na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro, respiram literatura.
Mais informações:
www.flip.org.br