Roma, Itália – Escritora, orientalista, arqueóloga, funcionária de confiança do primeiro-ministro Winston Churchill no Oriente Médio, peça chave para a criação dos estados do Iraque, Síria e Jordânia no início do século passado, autora de livros até hoje estudados pelos Serviços de Inteligência dos Estados Unidos e da Inglaterra e defensora ferrenha da paz da região. Trata-se da inglesa Gertrude Bell, personagem que teve sua rica, mas desconhecida história encenada no Teatro Belli, em Roma, no espetáculo "La Regina Senza Corona" (A rainha sem coroa, em português), de Massimo Vincenzi.
A peça foi inspirada no livro "Desert Queen", da autora e também orientalista Janet Wallach, publicado pela primeira vez em 1999 e reeditado em 2006, para as comemorações de oitenta anos da morte de Gertrude Bell, que faleceu em 1926, em Bagdá. "É uma personagem fascinante e fundamental para a história do Oriente Médio. Seus escritos e livros, por exemplo, estão sendo estudados pelos militares americanos hoje", conta a atriz italiana Francesca Bianco, que interpreta Gertrude nos palcos romanos.
Gertrude nasceu na Inglaterra em 1868. Fazia parte de uma família de industriais do aço em ascensão no país, eram os novos nobres da Inglaterra daquele período. Com uma excelente educação, aos 18 anos entrou para a Universidade de Oxford, um ambiente de homens, e foi a primeira mulher na Inglaterra a se formar em História Moderna pela faculdade. No universo acadêmico, sofreu preconceitos, como mostra a peça na cena em que Gertrude lembra de quando o reitor da universidade disse, em discurso aberto aos recém-chegados, que as mulheres, apesar de inferiores, começavam a fazer parte da universidade. Mas Gertrude logo provou o contrário.
A paixão pelo Oriente Médio
Aos 22 anos, a jovem Gertrude começou suas viagens pela Europa. Foi para a Romênia, Alemanha e Turquia, onde foi hospedada por um tio diplomata. A paixão pelo Oriente Médio foi despertada após uma viagem à Pérsia, aos 24 anos. Por causa de um amor que não deu certo, Gertrude descobriu um mundo novo, que a seduziria mais do que qualquer outro homem, como mostra o espetáculo. Dos relatos de viagem, Gertrude escreveu “Persian Pictures” (reeditado em 2005 pela editora inglesa Anthem). Em 1899, se transferiu a Jerusalém para estudar o idioma árabe e arqueologia, e começou a traçar sua futura grande viagem pela Arábia, então dominada pelo Império Turco Otomano.
A viagem durou dois anos. Gertrude foi a regiões onde hoje estão Palestina, Israel, Iraque, Jordânia, Síria e Egito. Visitou toda a massa de povos do Oriente Médio e Norte da África. Nesse período, Gertrude estabeleceu laços diplomáticos importantes com xeques e nobres árabes. Sempre elegante, bem vestida, fluente em cinco línguas (inglês, alemão, italiano, turco e, por último, árabe), Gertrude se movia com facilidade pelo mundo árabe. O deserto e suas cores mágicas, seus sabores e o seu povo tão fiel e solar, como escreve sua biógrafa, cada vez mais a estimulavam e ela escreveu mais um best seller, "The Desert and the Sown" (reeditado em 2001 pela editora Cooper Square).
A aventureira
Na entrada do século 20, o mundo árabe vira sua pátria, seu trabalho e sua razão para viver. Em 1906, Gertrude faz mais uma longa viagem, desta vez à Indiana Jones, por regiões inexploradas, tribos isoladas, guerreiros do deserto. Faz imagens, desenha mapas, cruza fronteiras que somente anos depois existiriam, escreve e informa à Inglaterra sobre a situação na região, trabalha como espiã para os britânicos. Pelo caminho, no Egito, encontra o jovem Thomas E. Lawrence, o Lawrence da Arábia (eternizado pelo extraordinário filme de David Lean, de 1962), que aos 23 anos fica fascinado por uma Gertrude sábia, com ares de celebridade, respeitada no mundo árabe e na Europa. "Ela foi uma espécie de professora para Lawrence, chamava-o ‘meu caro garoto’", diz Francesca.
Com interesses comuns pela região e temerosos de que a Alemanha, ajudada pela Turquia, dominasse todo o Oriente Médio durante a Primeira Guerra Mundial, onde jorrava o petróleo para a Inglaterra, Gertrude e Lawrence se aliaram. O objetivo era dialogar com os árabes e convencê-los a se unirem contra o domínio turco. Coube a Gertrude falar com os seus muitos amigos nobres, com as famílias capazes de governar os países que a inglesa pensava em criar, entre eles o Iraque. Foi num documento de Gertrude à Inteligência Inglesa que surgem, pela primeira vez, os nomes de Hussein Ibn Ali (líder da Revolta Árabe e pai dos futuros reis do Iraque, Faisal, e da Jordânia, Abdullah) e Abdul Aziz Al Saud (ou Ibn Saud, que se tornou o primeiro rei da Arábia Saudita entre 1932 e 1953), como potenciais lideranças na região.
Arquiteta do Oriente Médio
Os anos seguintes foram intensos para Gertrude. Com a Primeira Guerra em curso e a Revolta Árabe tomando forma, ela é a arquiteta inglesa no Oriente Médio. E faz jus ao cargo, propondo a criação do estado iraquiano. Mas o projeto foi rejeitado. Na época, pensava-se na Grande Síria, sob o comando do rei Faisal. Somente alguns anos depois, em 1921, é que a proposta foi aceita e Gertrude nomeada secretária Oriental no país recém-criado. Nascem também as fronteiras da Síria e a chamada Transjordânia (hoje Jordânia e Cisjordânia). É o fim do domínio turco otomano e do perigo alemão.
A tarefa de Gertrude com a Inglaterra parecia ter chegado ao fim e a inglesa então decidiu ficar em Bagdá para ajudar a construir o país, influenciando diretamente o rei Faisal a criar uma monarquia constitucional, o que levou o Iraque a ser a primeira nação árabe na Liga das Nações, em 1932. Com o respeito do monarca, a inglesa criou o Museu de Bagdá e se dedicou à arqueologia. Mas os tempos de paz pareciam nunca chegar e os últimos anos de Gertrude em terras árabes foram, segundo sua biógrafa, infelizes. A heroína se isolou.
Pátria árabe
Por conta de seu amor ao mundo árabe e a sua incansável luta pela paz na região, acabou rompendo com o governo inglês quando o Iraque clamou por sua independência (que acabou conquistando em 1932) e a Inglaterra ameaçou com outra guerra. “Gertrude sonhava e pregava a paz, o diálogo, acreditava que, com armas, não se poderia impor a liberdade”, diz Francesca Bianco. O mesmo sonho da segunda personagem da peça, também interpretada por Francesca, mas uma marine norte-americana em plena guerra do Iraque, em 2003.
Em 1926, às vésperas de completar 58 anos, em Bagdá, com uma dose extra de soníferos, Gertrude Bell, a fundadora do Iraque, faleceu. Deixou toda a sua herança – cerca de 50 mil libras esterlinas, um grande valor na época – para o museu que criou no país árabe. Foi enterrada no cemitério inglês em Bagdá. "Em 2003, seu museu e o cemitério onde foi enterrada desapareciam da história, queimados pelos bombardeios dos americanos, com o apoio dos ingleses", conta Francesca.