São Paulo – Uma semana após a morte do pai, o escritor Marcelo Maluf (foto acima) recebeu de seu tio uma herança improvável: um segredo guardado do avô de Marcelo, sobre uma tragédia ocorrida no Líbano do começo do século 20. Segundo o tio Sami, o avô Assad havia sido enviado ao Brasil ainda adolescente pelo pai após testemunhar o assassinato dos irmãos mais velhos, enforcados no quintal de casa por um oficial do exército turco-otomano. Durante oito anos ele matutou sobre aquela história, ou o que ele chama de “herança maldita”, se questionando se deveria ou não escrever sobre ela. “Se ele a manteve em segredo, por que eu a revelaria?”, dizia a si mesmo. Por outro lado, era uma história que precisava ser contada, era mais que uma tragédia familiar: era a saga de muitos imigrantes, a fotografia de um momento da história mundial e o fato que moldou muito do que eles, os Maluf, se tornaram. Em 2013, graças a um programa de fomento do governo do Estado de São Paulo (Proac), Marcelo transformou a herança em livro. Em 2015, nascia a A Imensidão Íntima dos Carneiros, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura de 2016.
O primeiro romance de Marcelo, que já era conhecido por seus livros infantis e infanto-juvenis, o colocou em destaque, o fez ser comparado com outros escritores de origem árabe, como Raduan Nassar e Milton Hatoum, e foi o que o aproximou de suas origens. Por conta do livro, tirou até a cidadania libanesa. “Conheci o cônsul do Líbano em uma festa e ele me perguntou se eu não tinha interesse em ter a cidadania. Fiquei interessado e fui atrás”, conta. Até então, tudo o que tinha em si da herança árabe eram algumas memórias da infância em Santa Bárbara D’Oeste, interior de São Paulo onde ele nasceu. Como os sabores da culinária árabe – que ele teve que adaptar há dez anos ao se tornar vegano – e uma lembrança bem pontual: a visita da prima Rita, em 1982, quando ele tinha oito anos. Pouco mais velha que ele, e só falando árabe, ela e a mãe ficaram dois meses no Brasil, e ele e a prima passaram muito tempo juntos. “Me lembro de entrar na sala e ouvi-las falando em árabe com minha vó e achava aquilo muito engraçado, aquela sonoridade me fazia rir”.
Depois que Rita partiu, eles seguiram se correspondendo. Elas mandavam do Líbano fitas cassete – que ele chama de cartas faladas – nas quais era possível ouvir ao fundo o barulho de bombas da Guerra Civil Libanesa (que durou até 1990). “Mas elas diziam que estavam seguras, em um abrigo antibombas, e até convidavam: venham visitar a gente em Beirute!”. Marcelo já esteve em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, para um festival literário, mas nunca foi ao Líbano – plano que ainda há de sair da intenção.
O avô libanês em torno do qual gira a história de “A Imensidão”, como ele apelida carinhosamente seu livro que o projetou nacionalmente, morreu antes de ele nascer. É uma figura mítica, o que ele chama de uma “presença de ausência”, que sempre teve um peso enorme em sua vida. Assad era casado com Karima Chacur, de origem síria. Eles se conheceram em Santa Bárbara. Com a avó ele conviveu até os dez, onze anos. O livro, que está esgotado e deve ser relançado em 2023 pela editora Faria e Silva, não é uma biografia do avô, nem mesmo uma autobiografia de Marcelo, mas uma mistura disso tudo, com referências históricas e lacunas preenchidas com muita imaginação. “Tudo o que eu não sabia sobre a história verdadeira eu fui inventando, inspirado em Mil e Uma Noites, que é sempre uma referência para mim”.
Marcelo contou com uma ajuda muito especial para preencher algumas lacunas, que também foi sua leitora beta da obra quando em construção: a mãe, Cleusa. “Ela foi uma ponte porque ela, sim, conheceu meu avô, conviveu com ele, me contou de sua personalidade, ora muito divertido, ora muito nervoso, com seus rompantes”. No final da escrita, a mãe adoeceu. Quando ele colocou o ponto final, ela faleceu. Não chegou a ver o livro pronto, mas se divertiu ao telefone nas vezes que Marcelo ligou para ler alguns trechos. Tio Sami, aquele que lhe confiou a história trágica dos tios avós, que por sua vez ficou sabendo da história enquanto viajava com o pai, mascate, pelo Brasil, também não chegou a ver o livro pronto.
Baterista, professor, escritor: criador
Quando saiu do interior, Marcelo tocava bateria, tinha uma banda e compunha música. Podia ser músico. Mas flertava também com educação de crianças, e estudou pensando em ser professor. Primeiro se graduou em arte-educação no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e depois fez mestrado, também na Unesp, em artes visuais. Chegou a dar aula, a trabalhar em museus, fez mediação de leitura de artes visuais. Era tudo muito interessante, mas ainda não era isso. Quando lançou o seu primeiro livro infantojuvenil, Jorge do Pântano Que Fica Logo Ali, em 2008, entendeu que sua forma de trabalhar com a educação de crianças seria através das histórias que inventava. Depois vieram outros livros como Meu Pai Sabe Voar, escrito em parceria com sua mulher, Daniela Pinotti, e outros do gênero literário. Em 2012, lançou seu primeiro livro de contos, Esquece Tudo Agora.
Em 2023, além de relançar o romance, Marcelo vai lançar três livros infantis: O Coração Que Saiu Pela Boca; O Mistério de Todas as Coisas, livro de poemas para crianças, e, de novo com Daniela, A Odisseia do Spray Grego – este motivado por um pote de spray de origem grega que o casal encontrou enquanto caminhava pela praia, na Ilha do Cardoso, no litoral de São Paulo. “Começamos a imaginar toda a jornada daquele pote desde que tinha saído da Grécia até chegar ao Brasil”, conta o autor. Um novo romance também vai ser impresso no próximo ano: Os Últimos Dias de Elias Ghandour. Ainda imerso nas origens árabes, Maluf criou um personagem, Elias, que herda uma loja de tecidos da rua 25 de Março quando o pai morre, nos anos 1960, e desiste do sonho de ser ator. É bem-sucedido no negócio, casa-se, tem um filho, mas vive infeliz pelas escolhas que (não) fez. Um dia, conhece um libanês por quem se apaixona, mas perde o namorado na Guerra Civil do Líbano. A história é contada por ele mesmo, já velho, de um sítio em Joanópolis, no interior de São Paulo.
Em meio a tantas ideias e produções, Marcelo ainda pensa em escrever sobre Karima, a avó síria, o outro lado árabe da família. Uma forma de reparar a invisibilidade das mulheres em A Imensidão Íntima dos Carneiros. “É um livro patriarcal porque, afinal, esta é uma sociedade patriarcal, em especial a árabe. Mas quero também contar a história dessas mulheres”, promete a si mesmo. E aos seus leitores que acabam de ler essas últimas linhas.
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