São Paulo – O escritor marroquino Abdellah Taïa veio ao Brasil para promover seu primeiro livro traduzido para o português, “Aquele que é digno de ser amado” (Editora Nós, 2018, 131 páginas). Ele esteve por duas semanas no País, participou da Bienal do Livro do Ceará, da Balada Literária em Salvador, onde conheceu o autor português Valter Hugo Mãe, e esteve em São Paulo nesta terça-feira (27) para um encontro da Pré-Balada Literária, no Centro Cultural B_arco, em Pinheiros.
Ele escreve em francês e tem livros traduzidos para o árabe, espanhol, inglês, sueco, dinamarquês e português. O autor conversou com o público sobre o processo da escrita, contou algumas histórias e tirou dúvidas sobre as cartas de seu livro, que confirmou ter diversos elementos autobiográficos. Ao final, ele autografou os livros, sem poupar abraços e selfies. Taïa foi o primeiro escritor árabe a assumir sua homossexualidade publicamente, em 2006.
No bate-papo, Taïa disse estar feliz de passar esse tempo no Brasil. “Estou feliz de estar aqui. Sinto que tinha um Abdellah brasileiro, e a gente se encontrou aqui. O Brasil me faz ser uma pessoa diferente, eu tenho conversado com as pessoas aqui e admiro a forma como os brasileiros ocupam os territórios dos sentimentos. O Brasil me renova a ideia do amor, do amar”, pontuou.
A mediadora, Simone Paulino, pediu que Taïa contasse “a história do Agepê” – cantor e compositor brasileiro, do Rio de Janeiro, falecido em 1995. O escritor esteve no Brasil em outubro do ano passado pela primeira vez, em Porto Alegre. Ele nunca tinha pensado que um dia fosse conhecer essa cidade brasileira e estava com prazo para entregar uma carta que havia sido encomendada para um filme alemão, que conta a história de amor entre um jovem libanês e uma alemã de origem turca. “Era uma carta póstuma, e a história é verdadeira, mas eles não podiam usar a carta original. Eu tinha dois meses para escrever e não conseguia me distanciar da carta verdadeira. Às vezes, o amor pode ser diabólico. Essa carta seria a última sequência do filme, e deveria traduzir uma voz do passado que continua presente pelo amor”, contou.
Quando chegou em Porto Alegre, Taïa foi avisado que tinha menos de uma semana para entregar o texto porque eles iriam rodar a cena. “Então eu entrei no Youtube e digitei ‘chansons brésiliennes’ (canções brasileiras, em francês), e o primeiro vídeo que apareceu foi da música ‘Deixa eu te amar’, do Agepê. Eu adorei aquela melodia, entendi algumas palavras, mas foi a canção que me inspirou a escrever a carta. Depois eu fui pesquisar a tradução da letra e em menos de três horas, eu escrevi a carta. Ela começa assim: ‘Mesmo de muito longe, deixa eu te amar um pouco’. É uma mistura, um escritor marroquino escrevendo de Porto Alegre, Brasil, em francês, para um filme alemão que conta a história de um libanês e uma alemã de origem turca”, disse. O filme tem título provisório “The Wife of the Pilot” (A Esposa do Piloto, em tradução livre) e deve estrear em 2022.
Inspiração para a escrita
Taïa acredita que a inspiração pode vir de lugares inesperados, como Agepê. Ele recomendou aos presentes que lessem o texto “Elogio à música ruim” (em tradução livre), de Proust, que segundo ele, fala bem disso. O marroquino afirmou existir uma elitização da cultura, uma hierarquia de sentimentos, de o escritor dar voz a personagens de elite e não se interessar pelas emoções do pobre, e disse que ele tenta inverter essa lógica. Para ele, é importante conhecer os autores e as grandes obras, ler poemas, até copiá-los e decorá-los, mas depois esquecê-los.
“Escrever é prática, prática, prática. O julgamento dos outros não é importante. Tive tanta rejeição na minha adolescência que hoje sei da importância de saber a quem devo mostrar um texto, assim como a quem não devo mostrar. Vivo essa emoção mesmo antes de escrever. Sempre quis mexer com as pessoas, quero que elas chorem. Os filmes egípcios também me influenciaram muito, era tudo que eu assistia na infância. Todos temos a capacidade de escrever com imagens.”
Como a escrita entrou em sua vida
Taïa contou que quando tinha 12 anos foi compreendendo o mundo e sua lógica, para depois superá-la. “Entendi que em Marrocos, quem falava francês era rico, e quem falava árabe era pobre. Eu precisava ser mais inteligente que todo mundo que queria que eu parasse. Escolhi o francês porque era a língua dos ricos, essa língua que me esmagava, me apossei disso, e queria ir embora para longe, mas esses, naquela época, eram sonhos irrealizáveis. Não era um caminho ingênuo a percorrer. Em uma idade muito jovem, 15, 16, 17 anos, tive que agir e pensar de uma forma muito diabólica”, disse.
Ele afirmou não ser escritor por ter lido Victor Hugo, Proust ou Shakespeare. “Essa é uma ideia muito burguesa, que exclui pessoas como eu; por essa lógica, os outros não podem existir. As pessoas têm medo daqueles que escrevem, principalmente a família, mas é preciso encontrar a força para continuar apesar das forças que desestimulam”, contou. O autor afirmou ser hipercurioso, e que, na literatura, o que existe não é necessariamente dito.
Entre 2003 e 2010, Taïa trabalhou como babá de um menino em Paris. Em 2010, ele ganhou um prêmio literário na França, e só então pôde se dedicar integralmente à profissão. O prêmio, segundo ele, trouxe dinheiro e reconhecimento, mas ele disse que vive de forma simples, modesta.
Gênero: Carta
Taïa contou que sempre quis escrever um livro no formato de cartas – “Aquele que é digno de ser amado” é escrito nesse formato. “Tenho 46 anos, sou de 1973. Na minha infância e adolescência, as cartas ainda tinham importância. Minha declaração de homossexualidade foi feita nesse formato de carta em um jornal árabe, em 2006. O ato de escrever uma carta, de ler uma carta em voz alta, as pessoas se identificam. É um formato simples, de uma profundidade e forma compreensível por todos. Existe voz na palavra”, afirmou.
O livro “Aquele que é digno de ser amado” é uma ficção escrita em quatro cartas, e segundo o autor, fala sobre um coração duro, uma vida seca. “Através de todo esse amor, faço uma reflexão do mundo. Não tenho vergonha de utilizar a minha própria vida, mas não conto segredos de outras pessoas. Posso me inspirar e transformar o que vejo. Escrevo o que imagino de você, apesar de você. A gente se lê nos livros, esse sentimento de identificação é a mágica da literatura”, ressaltou.
Relação com o Marrocos
Taïa mora em Paris, no prédio onde viveu a cantora Edith Piaf. “Ela vem do verdadeiro povo francês, de origem pobre, sua mãe se prostituía, e conquistou tudo aquilo, não tem quem não goste de Piaf”, disse. O escritor contou que vai com frequência ao Marrocos visitar seus irmãos e irmãs que vivem lá. Seus pais são falecidos, como conta a primeira carta de seu livro. Ele morou no país árabe até os 25 anos.
Seus livros são vendidos no seu país de origem, em francês, e há três títulos traduzidos para o árabe – “O dia do Rei” (editado no Líbano), “Um país para morrer” e “Cartas a um jovem marroquino” (editados no Marrocos). Ele contou que em sua casa no Marrocos, viviam 11 pessoas em três quartos, um para seu pai, um para seu irmão mais velho, e o último, para ele, sua mãe e suas irmãs. “Éramos nove pessoas em um quarto, até os meus 18 anos”. Outra semelhança com o livro, em que o personagem principal, Ahmed, também tem uma família grande em uma casa modesta.
Taïa disse que apesar de ter escrito seus livros em francês, pensa em escrever em árabe em breve, e que este seria outro processo criativo.
Colonialismo
O autor contou que há muito tempo queria escrever um livro só com cartas, mas que não podia fazer isso com qualquer tema, e agora, que já faz 20 anos que está na França, ele encontrou esse tema. O Marrocos foi colonizado pela França entre 1912 e 1956.
“É quase como se fosse uma palavra de ordem da França dizer, ‘nós colonizamos vocês, mas agora isso faz parte do passado’. Mas não é possível que seja dessa maneira, isso suscita uma espécie de amnésia, que é incentivada pela França. Para minha geração, nós começamos a entender essa história, como [a colonização] provocou os efeitos para nós, mas a França quer que esqueçamos tudo. Pelo racismo, o ódio aos estrangeiros e imigrantes, essa extrema-direita cheia de complexos, isso existe muito na França hoje em dia”, afirmou.
“E aí as pessoas acham que por eu ser homossexual eu vou falar coisas ruins do Marrocos e do mundo árabe, se eu sou escritor marroquino gay, então necessariamente eu vou estar do lado da França, do antigo colonizador. Não, jamais, nunca”, enfatizou Taïa.
O escritor continua, dizendo que vive esse sentimento todos os dias. “Nesse livro eu queria chegar nesse ponto preciso, de como meu coração se enrijeceu a partir da relação com a mãe e a partir do que os outros nos impõem, e também a partir dessa questão do colonialismo na relação amorosa”, avaliou, entregando os fragmentos autobiográficos do livro.
Para o autor, “quando a liberdade se torna tão qualificada, ela não é mais liberdade”, ou seja, no momento que ele consegue dominar a língua francesa e consegue citar (Jean-Nicolas Arthur) Rimbaud, André Gide, tudo aquilo que ele acreditava que o tornaria livre, pode ser também uma prisão. “O livro fala sobre isso e se o leitor não abandona o livro e chega até a terceira carta, eu consegui o que queria, de uma certa maneira, porque nessa terceira carta, as coisas entram numa maior complexidade, e a gente entende que existia um projeto de vingança do Ahmed, que só vai ser entendido na quarta carta”, disse. Ele não quis falar muito sobre a última carta para não atrapalhar a experiência de quem ainda não leu o livro.
Autoficção
Abdellah Taïa disse não ter uma fórmula quanto a utilizar sua própria vida para escrever ficção. “Não há regras, eu acho que pode soar como arrogância, mas tenho muitas histórias interessantes na minha família e me aproprio delas, e nesse livro tem muitos personagens e eu me orgulho disso. Não consigo fazer uma ficção que não envolva algo meu. De um modo geral, tenho dificuldade de sair de mim mesmo para fazer minha arte. Pode ser assumidamente autobiográfico ou por alguns desvios”, definiu.
Ele continua. “Eu olho as pessoas e penso em coisas. Isso é autobiográfico ou ficção? A literatura é isso. Eu olho para uma mulher, e imagino várias coisas sobre ela e escrevo. Todo mundo faz isso, não? Sou eu que imagino, isso pertence a mim. Minha literatura se situa nesse lugar, o que eu pego do outro apesar dele próprio, e isso que eu pego dos outros, o que eu coloco de mim mesmo”, declarou.
O autor disse ter a capacidade de sonhar com alguém por muito tempo. “Às vezes é uma pessoa com quem eu nunca falei, eu posso sonhar por meses, sonhar acordado. Por isso que falei de Agepê, isso para mim é a magia da canção, essas músicas têm esse poder de, em palavras muitos simples, condensar um sentimento. Eu nem conhecia o Agepê e tudo isso se abriu em mim”, afirmou.
Para ele, a mágica da literatura acontece quando se lê um livro e há um sentimento de estar lendo sobre a própria vida. “A ideia de que a arte nos conhece antes que nós mesmos a conheçamos. Pode ser um livro antigo, do século 17, 18, e podemos nos reconhecer naquelas histórias. É como se nossas pequenas vidas sejam outra coisa, que nos ultrapassa. Eu acredito profundamente nisso”, concluiu.
O evento no qual Taïa falou foi aberto ao público e aconteceu durante aula da Oficina de Escrita Criativa, com o escritor Marcelino Freire, que também organiza os eventos da Balada Literária pelo Brasil. A 14ª edição da Balada Literária ocorrerá na capital paulista de 04 a 08 de setembro, e o homenageado será o educador e filósofo Paulo Freire.
Cerca de 40 pessoas participaram da conversa com o autor, mediada pela diretora da Editora Nós, Simone Paulino, que editou o livro no Brasil, e com tradução simultânea do francês para o português de Raquel Camargo, que também será a tradutora do próximo livro de Taïa a ser editado em português, “Um país para morrer”, que deve ser lançado no ano que vem.