São Paulo – Antes do final do século 19, fazer compras no Brasil era deparar-se diante de um imigrante português, quase sempre parrudo, atrás do balcão da loja, exigindo garantias para dar crédito. Lá por 1880, no entanto, começaram a bater na porta das casas de brasileiros homens carregando sacolas cheias de tecidos, linhas, rendas, que, mesmo sem falar direito o idioma local, se propunham a baixar o preço da mercadoria, parcelar o pagamento, voltar outra hora.
Eram os imigrantes árabes que, sem planejar, traziam inovação para a atividade que escolheram como ganha-pão no Brasil, o comércio. “Eles arejaram muito o comércio no Brasil – marcado pelo tradicionalismo português – com crédito, liquidação, o giro rápido do estoque. O comércio foi reinventado”, afirma Oswaldo Truzzi, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor do livro “Patrícios – Sírios e Libaneses em São Paulo”.
Como andavam com a mercadoria a tiracolo ou nas costas, eles não podiam se dar ao luxo de andar, andar e não vender nada. “Por isso vendiam fiado, liquidavam, trocavam”, explica o professor. De acordo com Truzzi e também com a diretora do Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo (USP), Arlene Clemesha, o comércio foi uma das áreas nas quais os imigrantes árabes mais trouxeram contribuições ao Brasil logo após o seu desembarque.
Arlene lembra que, como comerciantes, os árabes também tiveram um papel importante como fornecedores de mercadorias para os trabalhadores das grandes fazendas, a maioria imigrante europeu. “O pagamento [dos trabalhadores] era muito baixo e eles logo se tornavam endividados com o dono da terra porque compravam seus mantimentos na pequena loja da fazenda. O árabe, fazendo papel de pequeno comerciante e mascate, foi uma importante válvula de escape para o colonato”, explica a diretora. Os árabes iam até os agricultores para fazer suas vendas.
Essa agricultura, aliás, baseada em grandes propriedades, foi o que fez os imigrantes árabes ficarem longe da atividade no Brasil, apesar de esta ser a sua principal ocupação em seus países de origem. A agricultura praticada pelos sírios e libaneses era de pequeno porte e familiar. Já no Brasil prevaleciam as grandes fazendas, principalmente de café. Diante da opção de ocupar pequenas propriedades, com terra ruim, ou ficar nas mãos de um patrão em uma grande lavoura, eles foram ser comerciantes.
"Entre ser subordinado e preservar sua independência econômica, ele prefere o segundo, mesmo que o negócio seja ínfimo, a ponto de caber dentro de uma mala. É só um baú, mas é dele, com autonomia de patrão", diz Truzzi, a respeito da atividade dos mascates. Nos países árabes, explica o professor da UFSCar, os que faziam o papel de comerciantes, na época da imigração, eram os gregos e os armênios.
Arlene diz que os imigrantes árabes avisavam os conterrâneos que estavam para desembarcar que nem falassem que eram agricultores e procurassem logo outra atividade.
A chegada
Os árabes chegaram em terras brasileiras em um período de forte imigração, não apenas da região, mas também de italianos, espanhóis e portugueses, no final do século 19. Diferente dos europeus – que vinham com translado gratuito, bancado pelo governo brasileiro em função da necessidade de mão-de-obra após a abolição da escravatura -, os árabes pagavam suas passagens de navio. E muitos acreditavam estar indo para a América do Norte.
Segundo Arlene e Truzzi, o motivo que levou ao começo da imigração foi principalmente econômico. A entrada, nos seus países de origem, de produtos industrializados europeus causou grande concorrência com a produção da pequena propriedade árabe, explica o professor da UFSCar, e foi um dos fatores do deslocamento ao Brasil.
Arlene lembra, no entanto, do entorno político que havia no período. Os árabes, que até então se sentiam parte do Império Turco Otomano, que dominava a região desde 1516, começaram a se ver excluídos do poder no final do século 19. Também a colonização européia, com europeus se aliando a grupos religiosos locais, mexeu com a harmonia da região.
Esses fatores, além de outros, estiveram envolvidos na primeira grande leva da imigração árabe no Brasil, que ocorreu entre 1870 e 1930 – com uma pausa durante a Primeira Guerra Mundial. Também houve, no entanto, explica Truzzi, outro momento de forte imigração em função da guerra civil no Líbano. Diferente do primeiro momento, no entanto, quando vieram os cristãos, nesta segunda vez os que chegaram foram os muçulmanos.
Atualmente, segundo Arlene, não se pode falar em uma nova leva de imigração árabe no Brasil. O que há, lembra ela, é a chegada de alguns grupos de refugiados, como o dos Palestinos. Não se compara, no entanto, ao movimento do passado, principalmente do final do século 19 e começo do século 20. Entre 1870 e 1900, por exemplo, entraram 5.400 sírios e libaneses no país. Só em 1913 chegaram outros 11 mil imigrantes da região. Hoje existem ao redor de 12 milhões de árabes e seus descendentes no Brasil.