Débora Rubin
debora.rubin@anba.com.br
São Paulo – O campo agora é outro. É um misto de grama e lama. É grande e úmido. É um campo de futebol. Quando pisam ali, Mohamed, Ali e Mostafa correm livremente atrás da bola com a certeza de que aquele outro campo, desértico, seco, quente, onde viveram nos últimos quatro anos, definitivamente ficou para trás. Mohamed, Mostafa e Ali são três dos 108 refugiados palestinos que vieram para o Brasil ao longo dos últimos dois meses. Eles estavam no campo de refugiados de Ruweished, na Jordânia, desde 2003, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, país onde viviam.
Em uma tarde chuvosa de quarta-feira, Mohamed, Mostafa e Ali são os únicos jogadores palestinos a comparecer no campo. Da turma dos brasileiros, Jhony e o novato Rafael. Os cincos fazem parte do Twister, time de várzea de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, criado pelo técnico Alexandre Aparecido Maciel no começo deste ano. Entre expressões árabes e palavras em português, a linguagem em campo que prevalece é a dos gestos. Ou do grito: leva a bola quem fala mais alto. É ali, em meio à lama e suor, que refugiados de guerra e meninos da periferia de Mogi se entendem e se integram.
Jhony e Rafael arregalam os olhos quando colegas falam árabe. Jhony, 16 anos, não sabia sequer que existe um lugar no mundo chamado “Palestina”. Foi o técnico Alexandre que explicou quem são os “palestinos” e porque eles estão ali. “É triste né?”, resume Jhony, um menino econômico nas palavras e generoso nas embaixadinhas. Ali também não entendia muito bem qual era a situação dos meninos de Mogi. Um dia, o técnico levou o jovem palestino para dar uma volta na favela onde vivem alguns dos 15 brasileiros do time. O menino que nasceu e cresceu em Bagdá, Iraque, ficou assustado.
O Twister é assim: um time desprovido de chuteiras, calções, bolas e apito. Quem não tem tênis, joga descalço mesmo. O lanche oferecido após o jogo é comprado pelo próprio Alexandre e preparado por sua mãe. Alexandre se converteu muçulmano há três anos e, desde então, freqüenta a mesquita da cidade. Em 2003, ele criou um time feminino que existia até o ano passado. Das meninas, ficou o nome Twister e a experiência como técnico. Foi na mesquita que Alexandre – que adotou o nome Zaidd como muçulmano – viu os palestinos pela primeira vez. Com o apoio do Xeque Hosni, convidou os meninos a se integrarem no time. Com o xeque, egípcio que está há seis anos no Brasil, Alexandre vem aprendendo o árabe. Hoje sabe o suficiente para dar as coordenadas em campo.
Os meninos treinam quatro vezes por semana, faça chuva ou sol. Mesmo quando muitos faltam, como no dia em que a ANBA acompanhou o treino, Alexandre faz questão de dar o treino. Rígido, o técnico não tolera palavrões nem excesso de gírias no campo. Dois brasileiros já desistiram porque acharam Alexandre um “mano folgado”. Respeito pelo outro é a máxima em campo. As palavras mais sujas em português já são reconhecidas pelos palestinos, que logo classificam como “Haram! Haram!” (pecado). “Três palavrões e o jogador é obrigado a assinar o caderno e a lavar o vestiário sozinho”, explica o técnico.
Ronaldinho de Bagdá
Ali Khaled Abu-Taha, 18 anos, veste a camisa verde do Twister – que Alexandre mandou fazer para o grupo – e um par de tênis doado pelo próprio técnico. Durante uma pausa do treino, ele puxa a bola para ele, faz uma, duas, três, quatro embaixadinhas e manda a pelota para a nuca, estendendo o braço tal como faz Ronaldinho Gaúcho. Ali grita: “Ronaldinho, Ronaldinho”, apontando para si próprio.
O futebol acompanha Ali em suas andanças como refugiado. Ele e o colega Mostafa Khaled Qodsieh, que se conhecem desde os 11 anos, quando estudavam juntos em Bagdá, sempre correram atrás da bola. Nos quatro anos e meio em que viveram no campo de refugiados de Ruweished, na Jordânia, era jogando bola que os meninos podiam sentir o tempo correr. Na prisão a céu aberto no meio do deserto, não havia liberdade de ir e vir, não tinha escola, não tinha a rotina dos tempos de Iraque. Mas tinha bola. “Mostafa, você quer ser jogador?”, “Se Deus quiser”, responde com um sorriso envergonhado.
O sonho logo dá lugar à realidade. E Mostafa sabe que, na verdade, as prioridades são outras. Aprender a falar português e arranjar um emprego são algumas delas. “Posso fazer qualquer coisa”, diz em inglês. Ele, Ali e outros adolescentes terão que voltar para a escola para recuperar o tempo perdido em Ruweished. Mostafa é um dos mais adiantados no curso de português. “Ele estudava em escola de superdotados no Iraque. Nunca tirou nota mais baixa que 95”, conta Juliana Arantes Dominguez, da Cáritas, ONG que está coordenando o trabalho de reassentamento dos refugiados em Mogi, em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Mohamed Mahomud Taleb, 24 anos, tem pressa. Já perdeu tempo demais. Comprou, com o dinheiro recebido como parte do Programa de Reassentamento, sua própria chuteira e sua bicicleta. Guarda como um tesouro os certificados de todos os cursos que fez nos quatro anos de campo: de instrutor de tênis a de como fazer arranjos de flores. Sua especialidade, no entanto, é como sapateiro. Enquanto não se ocupa com isso, corre atrás da bola.
Novos amigos
Se no campo os jovens palestinos se integram com os brasileiros, fora do gramado os meninos também fazem amigos. Mostafa já levou alguns vizinhos para conhecer a mesquita. “Na primeira semana, os moradores de Mogi encontravam com eles no supermercado e queriam abraçá-los, ajudá-los, alguns se emocionavam”, conta Juliana, que passa boa parte do tempo atendendo as solicitações dos palestinos via celular. “Muita gente de fora de Mogi também manda e-mail perguntando como ajudar, como fazer doações e até oferecendo emprego”, conta.
Os novos moradores já estão se virando pela cidade, principalmente os mais jovens. Vão ao supermercado, pegam ônibus e até saem em busca de emprego. Qades, irmão mais velho de Ali, foi com seu parco português e um bocado de determinação buscar um trabalho. Saiu de uma lanchonete fast-food com a promessa de uma vaga. Para começar logo, só precisa de sua carteira de trabalho.
Os libaneses
A colônia árabe de Mogi é, pelas contas dos próprios, a segunda maior da cidade – fica atrás apenas dos japoneses. A grande maioria ali é libanesa, gente que foi chegando ao longo do século XX. O comerciante libanês Mohamad Ahmad Saada, que tem uma rede de loja de móveis, lembra que quando chegou, em 1959, o comércio era dominado por seus patrícios. “Nesses tempos os japoneses ainda viviam na zona rural”, recorda.
Seu Saada foi um dos grandes entusiastas da construção da mesquita local, que ficou pronta em 2004, depois de 15 anos de obras. “Demorou porque não queríamos a ajuda de ninguém, fizemos tudo sozinhos”, explica. E seu Saada também é um dos empenhados em receber bem os novos moradores da cidade. Já foi acordado no meio da noite para levar uma mulher grávida que estava passando mal ao hospital. Ele também faz às vezes de tradutor para os palestinos.
Menos de dois meses após a chegada do primeiro grupo de refugiados, a cidade de 370 mil habitantes no interior de São Paulo começa a ganhar contornos de novo lar para seus 56 novos moradores.