São Paulo – Quando pequena, Andrêssa Faiad se aninhava debaixo da máquina de costura da mãe, uma Singer 666 da qual saíram enxovais e peças para a casa, e simulava suas costuras. Aos oito anos, já costurava roupas. Foi nessa idade que ela participou pela primeira vez de um desfile de moda sustentável, no qual foi apresentado o algodão colorido criado pela Embrapa, com a participação de sua tia Marta Gomes Faiad, já falecida, que foi uma das biólogas responsáveis pelo projeto. Aos 13, criou seu primeiro vestido de noiva. E, aos 17, fundou sua marca de roupas, a Callicore Moda Sustentável.
Podia seguir assim, autodidata, munida do combo “dom, intuição, observação, pesquisa, pensamento sistêmico e um olhar sempre voltado para a moda, figurinos, estética, ritos humanos, arte, cultura e, principalmente, sustentabilidade”. Mas ela sabia que o mercado demanda diploma e lá foi estudar Design de Moda, Estilismo e Figurinismo no Senac e na Belas Artes, de Goiânia. Depois ainda estudou Comunicação Social e fez inúmeras especializações.
Era final da década de 1990 e o termo sustentabilidade ainda soava distante. Falava-se em ecologia (ecos da Eco Rio 1992) e a reciclagem começava a aparecer como uma possibilidade de cuidado com o meio ambiente. Para Andrêssa, aquilo fez muito sentido. “Eu tinha um hiper foco em borboletas, suas espécies, e uma ligação forte com tudo que se referia à terra, ao planeta, à natureza”, recorda a estilista.
“Muito cedo queria transformar o mundo em um lugar melhor através da linguagem da moda e dessa maneira encontrei como me comunicar ao transformar o que eram sobras, considerado lixo, em luxo. E o entendimento de que não existe lixo”. Em tempo: Callicore é o nome dado pelo biólogo alemão Jacob Hübner a um gênero de borboletas subtropicais, que vivem onde o ecossistema é equilibrado.
Nesse percurso em busca de fazer seu nome e sua moda autoral, Andrêssa passou vinte anos em São Paulo. E, além de levar suas peças para diversos públicos, deu inúmeras oficinas de moda sustentável com a Oficina Callicore. Também trabalhou como figurinista em canais de TV e abraçou o desafio de fazer o figurino do espetáculo O Quebra-Nozes, apresentado no Theatro Municipal de São Paulo em 2022. Foram 588 itens de figurinos e acessórios para 388 alunos da Escola de Dança de São Paulo (Edasp). Tudo em apenas 26 dias.
Recentemente, em 2024, ela voltou para Brasília depois de 20 anos morando em São Paulo. Um câncer, que deixou sequelas, a fez precisar estar perto da família novamente. Sua família tem origens sírio-libanesas. Uma tia historiadora até escreveu um livro sobre a avó materna de Andrêssa, chamado “Flor da Síria, a história de uma mãe”, lançado em 1996. O nome é em homenagem ao comércio que a família tinha quando chegou ao Brasil, no início do século 20: Casa Flôr de Síria, que vendia especiarias e tecidos da Inglaterra (e mais um pouco de tudo). No livro, é contada a história da avó desde a vinda dos imigrantes, seu casamento, seus filhos, as perdas afetivas, documentos e fotos históricas, e relatos dos filhos e de alguns netos.
“Meu bisavô nasceu em 1885 na cidade de Trípoli e foi morar em Nova York, depois veio para o Brasil. Minha avó já nasceu aqui, no período da Primeira Guerra Mundial”, conta. “Segundo o livro da minha tia, durante revoltas em períodos políticos conturbados daquela época, a Casa Flôr da Síria, instalada em Santa Catarina, era sempre invadida e saqueada por invasores”.
“Minha avó sempre apoiou minha carreira, foi a única da família. Enquanto ela esteve viva, eu tinha muita determinação em realizar e trazer esse orgulho de realizar meu sonho”, conta a estilista, cujas coleções e peças possuem muita influência do Oriente Médio – a cultura, os bordados, os tecidos utilizados, a modelagem, tudo é referência. “Já desenvolvi peças para uma marca de roupas mulçumana, fiz lenços e vestidos para as mulheres; no meu trabalho, busco a leveza de tecidos, pinturas e tudo o que puder valorizar o lado positivo da cultura árabe. O que, cada vez mais, é extremamente necessário.”
A brasiliense nunca viajou para países árabes, embora vontade não falte, mas já mandou uma coleção para um amigo que tem joalheria na Índia e que participou de uma feira em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, com as joias dele e os vestidos dela, em 2014. A coleção fazia um paralelo entre cidades planejadas como Brasília e Dubai, e suas belezas arquitetônicas e naturais. Além das roupas, Andrêssa é apaixonada pela culinária árabe, e do que ela traz como lembrança. “Tenho uma saudade infinita da família reunida na mesa farta de pratos árabes, essa delícia de sabores”, suspira.
Moda sustentável, mundo em pé
De quando começou, e era uma das pioneiras no assunto, até hoje, muita coisa mudou no mercado da chamada moda sustentável. “Tudo nesse âmbito evoluiu e diversas marcas novas ganharam o mercado e seguidores, há muita cópia e pouca autenticidade, mas também há trabalhos incríveis e de qualidade, com investimento”, reflete Andrêssa. Para ela, o termo foi se popularizando e, ao mesmo tempo, se vulgarizando.
“Brechó que vende roupa seminova e usa esse termo está errado, o que eles fazem é moda circular. Moda, para ser sustentável, precisa de um ciclo completo de energia limpa, renovável e pode ser feita de resíduos, matéria-prima reutilizável, reciclável, ecológica, biológica e, importante, tudo de forma ética. São inúmeros fatores que definem de fato o ser sustentável, e não somente uma carona na onda do marketing verde”. A estilista sempre ofereceu 10 anos de garantia em seus produtos e serviços. Hoje, passou para 20 anos – totalmente na contramão do fast fashion, que produz peças que se desintegram em cinco lavagens.
Em suas criações, sempre peças únicas, ela usa desde sobras de tecidos de grandes fabricantes, restos dos figurinos que ela cria (em especial para teatro), e uma infinidade de materiais recicláveis: filtros e cápsulas de café, embalagens de shampoo, potes de cosméticos, fios e fibras, cascas e sementes de alimentos como abacate, jabuticaba, jamelão, amora, temperos como açafrão, cúrcuma, chá-mate e hibisco. Andrêssa atende onde trabalha – “meu home office é o meu showroom” – e vive cercada de plantas. Agora, de volta a Brasília, ela busca se reinventar em relação aos espaços e quer investir mais na venda online. Mas ela também já fez muita feira em praça pública, festas, bazares, e tem até uma Kombi que é sua loja itinerante.
Durante a pandemia, a estilista comprou a Kombi e migrou com ela para Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Uma forma de sobreviver naquela época. Depois de ter sido roubada, avariada e reformada, a Kombi segue com ela em Brasília, toda equipada com arara, mesa, energia elétrica, bateria renovável. Versátil, o auto também é camarim e serve de carro de apoio para produções.
O futuro pede calma
Depois de ter passado por uma cirurgia que tirou quatro quilos de tumores, quimioterapia e radioterapia, e ter ficado com algumas sequelas (uma segunda cirurgia afetou o seu caminhar, e hoje ela usa uma bengala), e com o INSS de incapacidade temporária negado, Andrêssa precisa seguir trabalhando, mas quer fazê-lo de outra forma: com menos produtividade e mais criatividade e exclusividade. Além do câncer, ela teve um acidente doméstico que a deixou com queimadura no rosto e, tudo isso somado, resultou em um burnout.
“Foi uma sequência de batalhas na vida que me fizeram repensar tudo, as necessidades de produzir somente o necessário, sob encomenda, com planejamento criativo para voltar a atuar com as limitações físicas de agora. A questão com a minha saúde me fez ressignificar minha jornada. Mas, como boa taurina, sou teimosa e luto e resisto até hoje nesta profissão que, para mim, é uma missão pois não é fácil como outras.”
Outra razão para diminuir o ritmo é a preocupação com a saúde do planeta. “Uma das coisas que me fizeram repensar as confecções em quantidade é que o nosso planeta não suporta mais tanta produção, não aguenta mais tanta gente entupindo os armários de roupas e acessórios. A vida é muito mais do que um produto, mas a vida de um produto precisa ser, no mínimo, menos descartável como vem sendo.”
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Andrêssa Faiad
*Reportagem de Débora Rubin, em colaboração com a ANBA