São Paulo – "Minha irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma de suas belas historinhas". Essa é a deixa – como se diz na gíria teatral – de Dinarzad para que a doce e inteligente Sahrazad (pronuncia-se Xahrazád) comece a contar as suas maravilhosas histórias ao rei Sahriyar (Xahriár) e, dessa forma, escapar da morte por mil e uma noites.
As fábulas de Sahrazad estão no Livro das mil e uma noites, que chegou ao mundo ocidental há 300 anos, e agora, pela primeira vez, foi traduzido diretamente dos originais árabes para o português pelo professor de língua e literatura árabes Mamed Mustafa Jarouche, da Universidade de São Paulo (USP). Até então, os muitos exemplares que chegaram ao Brasil eram traduzidos do francês.
O volume, que leva o selo da editora Globo, foi lançado no sábado (7). A trama árabe, que conquista leitores no ocidente deste o século 18, conta a história de um poderoso rei sassânida chamado Sahriyar que descobre a traição de sua mulher e sai pelo mundo numa incansável busca espiritual.
Após um período de andanças, ele tem uma revelação: "ninguém pode controlar as mulheres", como lhe diz uma jovem adúltera. Então, o rei volta para o seu reino e decide se casar a cada noite com uma mulher diferente e matá-la na manhã seguinte.
Depois da morte de muitas mulheres, surge Sahrazad, filha do grão-vizir do reino. Corajosa, culta e inteligente, ela adota uma estratégia infalível para se manter viva e impedir novas mortes: começa a inventar histórias e contá-las ao rei, faz isso durante mil e uma noites.
Ela começava a narrar as fábulas sempre antes de dormir, seguia com o conto durante toda a noite e, quando o dia estava amanhecendo, parava, geralmente na melhor parte da história. Sahriyar ficava curioso para saber o final e a mantinha viva por mais um dia.
"Sahrazad é um caso único de personagem feminino que atua com o intelecto para convencer o rei a abandonar sua estratégia nefasta e maluca", afirma Jarouche. Outra postura interessante, segundo o professor, é que ela usa a narração pura para fazer o rei mudar de idéia, diferentemente dos sábios árabes que, nas histórias da época, sempre apareciam com máximas e tratados para convencer os poderosos.
A astúcia de Sahrazad também pode ser observada no estilo narrativo. "Ela lança mão do suspense, que excita o rei e estica a história", explica Jarouche.
Versões da obra
Há muitas edições do Livro das mil e uma noites no Brasil. Em 1882, Carlos Jansen traduziu do alemão Contos seletos das mil e uma noites. Desde então, surgiram diversas edições relacionadas ao livro. Isso sem falar nos livros infantis e desenhos animados. Mas a obra nunca havia sido traduzida diretamente do árabe, a maioria dos textos tem como base a edição do francês Antoine Galland, que viveu entre 1646 e 1715, e incorporou ao livro contos famosos como Sinbad e Aladim, mas que não fazem parte da história original. Além disso, Galland adaptou os enredos aos costumes ocidentais da época, como o hábito de tomar café.
Para fazer a tradução para o português, Jarouche pesquisou durante cinco anos manuscritos na Europa e no Oriente Médio. Consultou três volumes do texto árabe da Biblioteca Nacional de Paris. "Como a leitura era bastante difícil devido a dialetos que não existem mais, erros de cópia, borrão e deterioração, pesquisei mais quatro das principais edições árabes do livro", afirma. A de Breslau, na Alemanha (1825-43), que é a primeira publicação completa, foi uma delas.
Outra edição utilizada na pesquisa foi a de Bulaq – bairro do Cairo, no Egito – que foi a primeira baseada em um único manuscrito egípcio. Jarouche estudou também a segunda edição de Calcutá (1839-42) – que não tem nada ver com a primeira, que data de 1814-18, a não ser a cidade onde foi impressa -, a de Leiden (1984) e manuscritos recentes de Beirute (de 1991 e 1999). Usou ainda livros de estudiosos e vários dicionários.
Série
O volume que chegou às livrarias na semana passada, no Brasil, é o primeiro de cinco, traz as primeiras 170 noites. Ele também será lançado em Portugal, para isso será adaptado para o português de lá. O segundo livro já foi traduzido, mas ainda não tem data para a publicação.
Além da fidelidade às histórias, a tradução de Jarouche apresenta notas sobre os aspectos lingüísticos e que explicam a comparação entre os vários manuscritos e edições árabes. Acredita-se que a história de Sahrazad surgiu no Iraque, no século 9, de lá foi para a Síria e depois para o Egito.
O volume também é recheado de anexos valiosos, com traduções de passagens do livro que possuem mais de uma versão e que servem de elementos de confronto para o leitor interessado na história da constituição do texto.
Outro diferencial do livro diz respeito aos nomes árabes. No volume, eles aparecem como realmente devem ser lidos. Sahrazad, por exemplo, surge grafado dentro da convenção internacional: Šahrāzād. O objetivo, segundo a editora, foi respeitar o leitor evitando "soluções precárias". As descrições da simbologia aparecem nas primeiras páginas no livro. O volume será vendido a R$ 55.