São Paulo – A ativista e escritora Mariam Saïd, viúva do pensador palestino Edward Saïd, está em São Paulo e falou nesta terça-feira (10) no seminário O legado intelectual de Edward Saïd, que vai até quarta-feira (11) no teatro Raul Cortez, no Sesc 14 Bis. Mariam traçou um panorama da vida e obra do marido, falando do trabalho de Saïd como professor, artigos e livros publicados, novos livros e projetos que virão, seu amor pela música e a Questão Palestina. Ela vem contribuindo para manter vivo o legado do marido desde sua morte, em 2003.
Nascida em Beirute, no Líbano, onde ficou até a juventude, Mariam conheceu Edward Saïd em Nova York, nos Estados Unidos, no final dos anos 1960. Na época, ele era um dos professores mais promissores da Universidade de Columbia, e conquistou o cargo permanente (tenure) na universidade aos 34 anos.
“A estrela de Edward começou a brilhar quando ele escreveu um artigo em 1970. The Arab Portayed (O Árabe Retratado, em tradução livre), originalmente publicada em uma edição especial do US Journal – The Arab World”, disse Mariam no seminário.
No artigo, Saïd fala sobre o tema da representação. Mariam citou uma passagem do artigo. “Como os árabes são frequentemente representados ou não de forma precisa e correta, deturpados”.
“Esse artigo foi escrito após a guerra árabe-israelense de 1967. Cinquenta e seis anos depois, uma situação similar está acontecendo hoje, agora. É muito inquietante”, disse.
Ela conta que quando eles se conheceram, Edward Saïd já era “um autor, um escritor prolífico, e um professor excelente que tinha seu trabalho reconhecido pelos seus pares e superiores”.
Timothy Brennan, o biógrafo de Edward Saïd, articulou para organizar o trabalho do autor antes do Orientalismo. Daí foi publicado o livro Places of Mind: A Life of Edward Said, em 2021.
Em 1975, Saïd escreveu seu primeiro livro de pensamento crítico, Beginnings: Intention and Method.
“Alguns anos depois, Orientalismo, a obra que abalou o mundo literário, foi publicada [em 1978]”, disse Mariam. Orientalismo abriu portas para debates e plataformas de discussões em todo o mundo acadêmico e é até hoje seu trabalho mais conhecido. O livro já foi traduzido para 36 idiomas.
“Desde então, sua carreira decolou e ele seguiu escrevendo livros e aceitando prêmios. Tudo isso enquanto ele lecionava em tempo integral na Columbia. Ele não conseguia parar. Talvez ele soubesse que seu tempo aqui não seria longo”, disse a ativista.
O ano de 2003 marcou os 25 anos de Orientalismo e uma edição especial foi publicada com um novo prefácio escrito pelo autor. “Edward Saïd trabalhou para romper barreiras, era um humanista e não tinha medo”, disse Mariam.
Ele recebeu diplomas honorários em universidades de várias partes do mundo e em 2003, um linfoma tirou sua vida tão rápido que Mariam contou que não pôde se despedir.
Na última década de sua vida, escreveu Cultura e Imperialismo (1993), Out of Place: a Memoir (1999), The End of the Peace Process: Oslo and After (2000), entre outros títulos, entrevistas e artigos.
Mariam disse que há um arquivo com o acervo de Edward Saïd na Universidade de Columbia e que um dos projetos futuros é digitalizar toda sua obra e disponibilizar online para acadêmicos de todo o mundo. Também há uma bolsa de estudos em seu nome, a Edward Saïd Fellowship, na Columbia.
A esposa de Saïd conta que ele sempre amou música e tocava piano, como sua mãe. Segundo Mariam, a música é mencionada em seus livros. Hoje ela conduz escolas de excelência em música em seu nome e a Fundação Barenboim-Saïd, com unidades em vários países, como Estados Unidos, Alemanha e Espanha, além de um conservatório de música na Palestina, com unidades em Ramallah, Jerusalém, Belém e Gaza.
“Enquanto a luta está acontecendo hoje, temos esperança que as instituições de música continuem e que tenham um futuro, eu oro por isso”, disse. Edward Saïd viveu a vida prezando pela educação de alta qualidade e acreditava na essência da disciplina, perseverança e foco, segundo Mariam. “Ele dizia que o impossível é mais fácil de alcançar do que o difícil”, contou.
Em breve, um livro com o trabalho de Saïd na música será publicado. Outra publicação póstuma será um livro de poemas de Saïd, escritos em sua juventude.
Mariam Saïd já esteve no Brasil em 2014, quando foi inaugurada a Cátedra Edward Saïd na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Sobre a Questão Palestina, Mariam contou que nos anos 1970 Saïd discutiu uma solução de dois estados, mas que ele fez outras visitas à Palestina ao longo dos anos e em 1999 publicou um artigo na New York Times Magazine defendendo a solução do Estado único. “[Ele defendia] a solução de um estado que reconheça o direito de todos os seus cidadãos, direitos iguais, que seja equânime, justo, e promova a justiça social. Essa posição se dá por uma série de razões. Por isso o final de sua obra é tão contundente, porque ele fala de como é difícil a solução de dois estados, mas que não se pode eliminar toda uma história, cultura e povo”, declarou.
Soraya Smaili, ex-reitora da Unifesp e fundadora do Instituto da Cultura Árabe (Icarabe), foi mediadora da palestra de Mariam. Ela lembrou do “quanto nós precisamos da obra dele, não só na conjuntura política, mas na vida. O quanto a obra dele traz paralelos importantes das dimensões da vida humana”, disse. Ela falou de sua vasta obra e atuação em diferentes áreas, inclusive na música.
“Saïd era um intelectual, um estudioso que apresentava soluções a partir de seu trabalho e colocando à disposição a promoção da igualdade e da justiça social”, disse Soraya Smaili. Segundo Soraya, o Sesc-SP gravará todo o evento e pretende, a partir do material, realizar um novo livro pelo Icarabe.
Falaram na abertura do evento Olgária Matos, Coordenadora da Cátedra Edward Saïd-Unifesp; Lia Rita, vice-reitora da Unifesp; Francisco Miraglia, do Instituto de Matemática e Estatística-USP; Murched Taha, presidente do Instituto da Cultura Árabe; o embaixador Osmar Chohfi, presidente da Câmara do Comércio Árabe Brasileira; e representando o Sesc São Paulo, João Paulo Leite Guadanucci.
Osmar Chohfi citou uma fala de Saïd de 1999 sobre a concepção do projeto Divã Oriente-Ocidente, com Daniel Barenboim, na abertura. “No nosso trabalho, planejamento e discussões, o nosso princípio central é que a separação entre os povos não é solução para os problemas que dividem as pessoas. Cooperação e coexistência podem ser feitas através da música, da forma como temos feito e vivido. Estou repleto de otimismo apesar do céu escuro e da aparente falta de esperança do momento que nos acerca a todos”, disse.
O embaixador também parafraseou Mariam Saïd, com sua anuência, resgatando uma fala sua de 2005. “Manter a sua memória é manter Edward Saïd vivo“, declarou.
Veja a programação para o segundo dia do seminário, que contará, nesta quarta-feira (11), com mesa com o escritor Milton Hatoum e o professor doutor Salem Nasser, com o tema “Edward Saïd e o trágico: a Palestina, a denegação e a viagem impossível”, entre outras palestras. O encerramento do evento será feito pela filha de Edward Saïd, a atriz, dramaturga e ativista Najla Saïd.