Evaristo de Miranda*
A agricultura brasileira tem raízes profundas no mundo árabe, no chamado Al Alam Al Arabi. Foram seis séculos de presença árabe na Península Ibérica. Durante esse período, sua agricultura conheceu um aperfeiçoamento sem precedentes. O ano da descoberta da América, 1492, foi o da retomada de Granada pelos Reis Católicos e da expulsão definitiva dos muçulmanos da Europa Ocidental. Os conhecimentos agrícolas ficaram.
Essa herança de conhecimentos agropecuários ibéricos chegou ao Brasil com o povoamento português e seu dinamismo em ciências e descobertas, como a intensificação da cana-de-açúcar. Ainda hoje, ela marca o mundo rural.
A primeira presença árabe no agro é etimológica. O árabe está na origem dos nomes de produtos como café, açúcar, álcool, laranja, limão, algodão, arroz, tamarindo, damasco, gergelim, tâmara, azeitona, azeite, tangerina e outros. O mesmo ocorre com hortaliças, flores e plantas aromáticas: alface, berinjela, almeirão, cenoura, alcachofra, espinafre, acelga, açafrão, alcaparra, alecrim, alfazema, jasmim, açucena e até salada. E também na pecuária: rês, alazão, gibão, alforje, alferes, alcatra, açougue, açude, pato e até javali. Medidas, dimensões e valorações de origem árabe resistem ao sistema métrico e são utilizadas até hoje: alqueire, arroba, almude, resma, safra, leilão, tarifa e alfândega.
A agricultura próspera da Península Ibérica, a partir do século 10, resultou de novas técnicas desenvolvidas pelos agrônomos árabes. Dentre eles, Ibn Al Awan, patrono da agronomia e da veterinária, o equivalente a Hipócrates para a medicina. Esse agrônomo árabe-andaluz morreu em Sevilha, em 1145. Ele criou as bases da ciência agronômica, ultrapassou a simples acumulação de conhecimentos empíricos, forjou vários conceitos agronômicos originais e deu origem à agronomia como ciência de observação e experimentação.
O Livro da Agricultura, escrito por Ibn Al Awan, é um verdadeiro tratado de agronomia, com cerca de 1.500 páginas. Seus 35 capítulos, em três volumes, apresentam os resultados de uma revisão bibliográfica mais completa possível dos autores gregos, latinos, egípcios, caldeus, persas e nabateus, confrontada a experimentos realizados em residências, campos e palácios dos califas em Granada e Sevilha. Esses locais funcionavam como “jardins de ensaios”. E os resultados eram avaliados com uma “estatística” básica, apoiada em ábacos. No Marrocos, Ibn Al Awan dá nome a uma revista de pesquisa agronômica, Al Awamia, análoga à Bragantia, do Instituto Agronômico de Campinas.
Sua obra detalha o cultivo de 151 espécies de árvores abordando técnicas de propagação, meios de multiplicação, plantação, conduta, poda, enxertia e tratos fitossanitários. E distingue a reprodução sexuada nas árvores. O capítulo XIII se intitula Fecundação Artificial das Árvores.
Com exceção de suínos, todos os animais domésticos foram estudados por Ibn Al Awan, segundo uma lógica constante: escolha dos animais, seleção, reprodução, estabulação e confinamento, alimentação e aspectos sanitários. Os cavalos, paixão conhecida dos árabes, estão em um tomo inteiro da obra. Entre vários temas técnicos, ele trata de 112 enfermidades e apresenta receitas de mais de 20 colírios para cavalos (sic!). O título desse capítulo: “Tratamento de algumas das doenças que sobrevêm aos cavalos nas diversas partes do corpo. (…) Sintomas e diagnósticos para as doenças; remédios. Esta parte da ciência é a medicina veterinária”. A última parte de seu livro sobre avicultura aborda a incubação artificial de ovos e, no sentido amplo, trata da criação de pombos, galinhas, pavões, patos e gansos. Um artigo ensina a fabricação de foie gras. E dedica o último à apicultura.
Após o período do povoamento português, o contato com o mundo árabe foi retomado em um novo contexto por Dom Pedro II. O imperador fez duas viagens ao Oriente Médio e norte da África. Visitou Líbano, Síria, Palestina e Egito. Dom Pedro II era poliglota, conhecia mais de 20 idiomas e era fluente em mais de uma dezena, incluindo tupi, hebraico e provençal. Ele escrevia, lia e falava árabe. E deixou um grande legado de sua viagem ao Oriente Médio: incentivou e organizou a imigração árabe ao Brasil.
O interesse de Dom Pedro II pelo Líbano teve início em seu contato com o Conde Miguel Debbane, nascido em Sídon. Após sua emigração para o Egito, ele tornou-se o Cônsul Honorário do Brasil em Alexandria. Ali, construiu, em 1868, uma igreja cristã greco-melquita, consagrada a São Pedro, em homenagem a Dom Pedro II e visitada pelo imperador em 1871.
Em 1876, o imperador chegou ao Líbano, acompanhado pela imperatriz Tereza Cristina e por uma comitiva de 200 pessoas. O Líbano era um pequeno emirado, com relativa autonomia, sob o Império Otomano. Dom Pedro II fez reuniões e palestras sobre o Brasil, foi destaque na mídia local e incentivou a imigração árabe. Fazia registros diários de suas experiências em escritos, desenhos de próprio punho e fotografias. A “Collecção D. Thereza Christina Maria”, com cerca de 40 mil fotos, é o maior acervo de um governante no século 19. Entre elas, as fotos da passagem pelo Egito, em 1871, e por Líbano, Síria, Palestina e Egito, em 1876.
Os escritos de Dom Pedro II expressam sua visão de estadista ao buscar desenvolver no Brasil outra agricultura, diferente daquela baseada em trabalho escravo, cana-de-açúcar, tabaco e café. Defendia uma agricultura familiar, análoga à existente na Europa, mas com características do empreendedorismo da norte-americana. Ele estabeleceu contatos e acordos com monarquias de Prússia, Áustria, Rússia, Polônia e até do Japão para favorecer a vinda de agricultores ao Brasil.
E concedeu terras a esses imigrantes, de forma organizada, sobretudo no Sul e Sudeste, num modelo de colonização e assentamento cujo sucesso ainda tem muito a ensinar. No Líbano, o imperador afirmava: os árabes seriam recebidos de braços abertos no Brasil e prosperariam. Seu impulso à imigração deu certo. Poderia Dom Pedro II imaginar uma comunidade de origem libanesa no Brasil, como hoje, numericamente superior à população do Líbano? Quatro anos mais tarde, em 1880, aportavam os primeiros imigrantes árabes. A eles juntaram-se imigrantes de diversas nacionalidades da Europa e do Oriente, e foram a base da nova agricultura e agroindústria. Até a expansão recente do agronegócio no Centro-Oeste e Matopiba resulta de seus descendentes.
As famílias de origem árabe destacam-se em ciências, medicina, agricultura, política, construção civil, artes, literatura e em diversos serviços, do Acre ao Rio Grande do Sul. Graças à migração sírio-libanesa, temos os Abdala, Abib, Abouchar, Aboud, Afif, Alckmin, Amin, Assad, Attala, Bitar, Buainaim, Buaiz, Buzaid, Calfat, Calil, Caram, Cassab, Chalita, Chedid, Curi, Curiati, Cutait, Daher, Farha, Fuad, Haddad, Hage, Hamu, Helou, Houaiss, Jabor, Jafet, Jatene, Jereissati, Maluf, Mansur, Maron, Massaad, Mattar, Medina, Miguel, Mofarrej, Murad, Nagib, Nasrallah, Nassar, Nassif, Rachid, Richa, Saad, Salim, Salomão, Sater, Seif, Skaf, Tanuri, Temer, Zahar e outras, com personalidades de destaque aqui e no mundo. A Câmara de Comércio Brasil-Líbano, com mais de 60 anos, expressa o vigor do aporte libanês ao desenvolvimento do país.
Agora, um novo momento na história com o mundo árabe ocorre, graças à agropecuária brasileira: o crescimento das relações comerciais com os 22 países da Liga Árabe. Segundo dados da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e da COMEX, em 2021, o bloco comprou US$ 14,42 bilhões de produtos brasileiros, uma alta de 26% em relação a 2020. Recorde histórico. A Liga Árabe é hoje o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas de China e Estados Unidos.
Frango, açúcar, carne bovina e grãos lideram as exportações do agro. Os dois maiores destaques em crescimento foram Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita. A Liga Árabe é o quinto fornecedor em importações: US$ 9,82 bilhões, em 2021, um crescimento de 82% com relação a 2020 (combustíveis, fertilizantes e alumínio).
Missões comerciais, nos dois sentidos, sucedem-se. Investimentos árabes no Brasil têm crescido, assim como a cooperação científica e tecnológica. A Embrapa mantém ações de pesquisa conjunta em países árabes, como com o Centro Internacional para Agricultura Biossalina dos Emirados Árabes.
No agronegócio, cresce a aproximação entre empresas e empreendedores, árabes e brasileiros. O futuro das relações com o mundo árabe, alicerçado num passado ainda pouco conhecido e tão rico, poderá alcançar dimensões muito além das já expressivas conexões econômicas.
إِنْ شَاءَ ٱللَّٰهُ , Insha’Allah! Oxalá!
Evaristo de Miranda é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa Territorial. Mestre e doutor em Ecologia pela Universidade de Montpellier, com pesquisa realizada sobre a África e autoria e coautoria de mais de 50 livros, ele acaba de publicar a obra “Tons de Verde” em árabe.
O artigo acima foi publicado originalmente na Revista Oeste