Por Pablo P. S. Romero*
Pesquisa realizada em 2021 nos arquivos do Al Ahram – principal jornal do Egito – revelou uma publicação de grande interesse histórico: a mais antiga referência ao Brasil ocorre na primeira página da edição de 19 de novembro de 1889, em árabe, precisamente por ocasião da proclamação da República. O evento, que chegou ao Cairo por fontes telegráficas, despertou atenção do público egípcio e ensejou a publicação de matéria com descrições de valor historiográfico sobre o Brasil do final do século XIX, ainda que a fidelidade aos fatos mencionados seja apenas aproximativa.
Intitulada “Brasil”, a notícia inicia-se com breve relato do “levante de guarnição militar na capital do país que depôs o governo, substituindo-o por outro de bases republicanas”. Dirigindo-se a um público curioso acerca da nação sul-americana, o texto traça panorama da geografia, das riquezas naturais, da estrutura social, do sistema político e, sobretudo, da história da formação do então jovem país independente.
Ao descrever o amplo território e as particularidades geográficas do Brasil, o texto menciona as longas fronteiras, “até então não demarcadas, exceto pela frente sul”, atentando para o fato de que “sete décimos do território correspondem a florestas e terras não agricultáveis, ao passo que apenas um décimo das terras brasileiras seria propício à agricultura”. Tal situação não impede o autor de impressionar-se com as “grandes riquezas”, como minerais, produtos agrícolas e florestais, bem como rebanhos e animais silvestres. O relato egípcio estima a população brasileira, no ano de 1865, em dez milhões de habitantes, “dos quais um milhão e meio de escravos, exceto pelos índios independentes que se deslocam de parte a parte, residentes em sua maioria na região do Rio Amazonas”. Avalia que não tardará muito para que o “grandioso povo atinja o sucesso e o progresso”, destacando, nesse contexto, os esforços empreendidos pelo imperador Dom Pedro II em prol da promoção do desenvolvimento de seus súditos.
O Brasil é descrito como “monarquia hereditária constitucional”, dividido em províncias lideradas por governadores e dotadas de legislações “inteiramente distintas, vinculadas entre si por laços de solidariedade, sujeitas a um único chefe: o imperador”. “Autoridade absoluta”, por sua vez, residiria nos deputados do país, que o governam, e “sem ordem ou sanção dos quais não é possível qualquer mudança legislativa ou constitucional”. São objeto também da atenção do autor as capacidades militares do Brasil. Segundo o relato egípcio, o país dispunha de “24 mil soldados em tempos normais e 595.284 soldados na Guarda Nacional, tendo conseguido arregimentar, na guerra contra o Paraguai, 60 mil combatentes, alistados no Exército em sua maioria voluntariamente e por livre escolha”. Descrevendo elementos da sociedade brasileira, o autor observa que, embora o catolicismo seja a religião predominante no país, “nele existem diversas outras”. São interessantes os dados levantados acerca da situação econômica do Brasil e das reformas em curso. O país implementava à época “muitas reformas, como pavimentação das estradas para facilitar o transporte das safras […] e expansão das vias férreas, cuja extensão atingia 558 quilômetros”. Destaca, ademais, a “plena liberdade” vigente no Brasil, “defendida pela Lei em todos os seus aspectos, sendo absoluta para a imprensa, as pessoas, o comércio e a indústria”.
A história da nação sul-americana é comentada de forma detalhada pelo periódico egípcio. De acordo com o artigo, “a história ‘de facto’ teria início no século XV, quando, no ano de 1500, o capitão espanhol Vicente Yáñez Pinzón chegou ao Cabo de Santo Agostinho, descobriu o estuário do Rio Amazonas e deles tomou posse em nome de seu senhor”. “Não muitos meses depois”, prossegue o autor, “o português Pedro Álvares Cabral lançou a âncora de sua nau em local que chamou pelo nome de Porto Seguro, assegurando a conversão do país em propriedade do rei de Portugal”. A gênese do Brasil é situada no contexto das disputas territoriais entre Portugal e Espanha nas Américas, propiciadas pelas expedições de Cabral e Pinzón: “como resultado desses dois eventos, surgiu um diferendo entre os referidos estados, que apenas se encerra mediante o tratado celebrado em Tordesilhas, multiplicando-se, com isso, as campanhas com destino ao país. Portugal pôde assim consolidar sua autoridade e estender sua posse sobre tudo naquela terra que Cabral batizou de ‘Terra do Ouro’[sic], posteriormente chamada de ‘Brasil’”.
O desenvolvimento da colônia, com o ciclo da cana-de-açúcar, a chegada dos jesuítas e as reformas administrativas, são descritas no artigo: “ao perceber o benefício e a riqueza do país, o governo redobrou seu interesse e enviou […] os mais nobres de seu reino, concedendo-lhes vastas terras e muitos feudos. Depois vieram os jesuítas, que disciplinaram seu povo e o concentraram nas cidades”. Naquela época, cita, “o Brasil adquiriu maior importância para Portugal, que descobriu ouro em 1698 e diamantes em 1730, sendo que, no início do ano de 1810, a quantidade de ouro extraída atingiu 14.280 quintais e a de diamantes, 2.000 libras por ano”. A cobiça das potências estrangeiras e a ocupação holandesa, durante os períodos da União Ibérica e a ascensão da dinastia de Bragança, são também abordados: “A França tentou estabelecer um estado na província do Rio de Janeiro em 1555, mas não teve sucesso, voltando a tentá-lo, também sem sucesso, em 1610, até que Portugal foi incorporado à Espanha, levando consigo o Brasil nessa união. Inglaterra e Holanda eram à época inimigas e atacaram a colônia. A Holanda saqueou-a após violenta resistência do Brasil, mas abandonou grande parte do território, após a queda do rei Filipe IV e a ascensão da dinastia de Bragança”, culminando na expulsão definitiva dos holandeses em 1654.
O autor egípcio cita, dentre os eventos que levaram à independência do Brasil, a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e a ocorrência de revoltas populares: “o Rio de Janeiro tornou-se capital do Brasil, e a corte portuguesa para lá se mudou em 1808”. O relato assinala a participação popular no processo de independência do Brasil, com a aclamação de D. Pedro I como “defensor perpétuo” do país, bem como os conflitos internos e externos que se seguiram, culminando no reconhecimento da soberania brasileira por Portugal em 1825, com a conclusão do Tratado de Paz e Aliança: “[…] o povo brasileiro indignou-se e revoltou-se em apoio a D. Pedro e contra os governantes, que depuseram, fazendo dele seu defensor. Em 1822, aclamaram-no imperador e proclamaram a independência do Brasil de Portugal”.
Por fim, o autor descreve como a superação do conflito dinástico entre Brasil e Portugal abriu espaço para a progressiva estabilização do país, com o início do reinado de D. Pedro II em 1840, o qual viria, décadas depois, a visitar o Egito: “[…] o rei português faleceu e foi sucedido por seu filho D. Pedro […], e o Brasil encontrou severas dificuldades durante a adolescência do rei, o qual superou todas até atingir a maioridade e então casou-se com uma princesa de Nápoles, com quem teve duas meninas”.
O relato histórico do Brasil monárquico encerra-se em tom melancólico, ao recordar “as muitas vezes” que se escreveu sobre o Imperador e “seu amor pela ciência e pelo progresso”, e narra, com surpresa, a chegada do telegrama com as notícias de “sua deposição, da comoção dos revolucionários, de sua expulsão do reino e da conversão deste em República”.
Embora apenas formalizadas em 1924, já no período republicano, as relações entre Brasil e Egito remontam ao século XIX, época na qual ambos os países eram governados por linhagens monárquicas. Tal característica terá contribuído para aproximação inédita entre o mundo árabe e um país sul-americano, consubstanciada pelas visitas do Imperador D. Pedro II ao Egito, em 1871 e 1876, as primeiras de um chefe de estado americano ao país. O vínculo dinástico do imperador brasileiro com a casa das Duas Sicílias, por meio de sua esposa Teresa Cristina, propiciou o estabelecimento de consulado brasileiro em Alexandria a partir de 1867. As visitas imperiais ao Egito e ao Levante, na década seguinte, por sua vez, contribuíram de forma decisiva para atrair a imigração árabe ao Brasil, lançando as bases para as sólidas relações com os países da região e para o que viria a ser a maior comunidade árabe no continente americano, estimada em mais de 10 milhões de descendentes.
* Pablo P. S. Romero (foto de abertura) é diplomata e foi chefe do Setor de Imprensa da Embaixada do Brasil no Cairo entre 2018 e 2022. As opiniões expressas no texto não correspondem necessariamente às posições oficiais do governo brasileiro.
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