São Paulo – No novo livro do escritor Milton Hatoum, o seu primeiro de contos, chamado “A cidade ilhada”, a página 45 chama a atenção de maneira especial a quem tem alguma ligação com o mundo árabe. O que vem escrito no topo da folha é “O adeus do comandante”, título do conto. E o que Hatoum relata ali é a história do seu Moamede. Seu Moamede é um homem que gosta de contar histórias, um vendedor de mercadorias, que são transportadas pelo rio Amazonas. Hatoum não escreve, mas fica claro que Moamede é um árabe, ou descendente de árabes. “Seu Moamede é uma homenagem ao meu avô Mamede, que foi um grande contador de histórias”, diz Hatoum em entrevista à ANBA.
Hatoum tem descendência libanesa e afirma que as histórias que ouviu, na infância, sobre o Líbano, país de origem da sua família, ajudaram a estimular a sua imaginação. Muitas delas eram contadas pelo avô Mamede. “Ele contava histórias para os netos, e muitas me impressionaram”, afirma. Na página 45 do livro de Hatoum, seu Moamede, logo após descer de uma das embarcações do rio Amazonas, conta uma história aos seus amigos e netos. É a história de um barco no qual subiu para transportar suas mercadorias, e que levava, além de muita gente, também um caixão.
O ataúde estava vazio e era do comandante da embarcação, amigo de Moamede. Em um lugarzinho na beira do rio, o barco parou, e o comandante saltou. Voltou trazendo um corpo enrolado em uma rede, que foi posto dentro do caixão. E levou o ataúde para a sua casa, uma encomenda para a mulher. Era o amante, e ali terminou a história de Moamede. O conto, além de homenagem ao avô, é dedicado a um tio de Hatoum, Adib M. Assi. “Uma das pessoas que mais me estimularam quando comecei a escrever. Ele lê tudo o que publico”, afirma o escritor brasileiro, nascido no estado do Amazonas.
No livro “A cidade ilhada”, além do seu Moamede, há em outro conto, “A natureza ri da cultura”, também personagens árabes. Neste caso, porém, são avô e avó do narrador do conto citados para introduzir o personagem principal da trama, um amigo da avó. Também neste caso há inspiração de Hatoum nos avós. “Mas também de vizinhos e amigos. A casa da minha infância era freqüentada por muitos imigrantes do Oriente Médio, do Marrocos e de Portugal”, diz Hatoum, que nasceu em Manaus. Esse movimento também influenciou na criação de dois dos seus romances, “Relato de um certo Oriente” e “Dois Irmãos”.
“A cultura árabe foi importante na minha infância. Um escritor quase sempre reinventa sua infância e juventude. Meus parentes não se reconhecem nos personagens dos romances, mas alguma coisa deles está presente nesses personagens. Eu ouvia histórias de Beirute, de Batroun, do sul do Líbano e ficava fascinado por esse mundo tão distante e tão próximo. De algum modo, meu pai e meus avós maternos foram ficcionistas antes de mim. Sem que eu soubesse, muita coisa do que eu ouvi sobre o Líbano iria estimular minha imaginação”, diz.
Sangue árabe
Hatoum é descendente de árabes tanto pelo lado paterno quanto materno. Ele passou boa parte da infância, porém, bem próximo dos avós maternos. “Meus pais moravam com meus avós maternos e seus filhos. Acho que eram mais de vinte pessoas, porque meu avô recebia primos e sobrinhos do Líbano e a família só aumentava”, lembra o escritor. Segundo ele, foi uma época difícil para os avós, que tinham sete filhos. “Minha avó cozinhava, vendia quibe e esfiha, e meu avô e meu pai trabalhavam numa loja de tecidos. Eram famílias típicas de imigrantes, que queriam ver seus filhos na escola”, diz o amazonense.
O autor não chegou a aprender o idioma árabe, mas ainda tem lembranças da comida feita em casa, uma mistura de pratos do Amazonas, com peixes, e árabes. “Lembro dos peixes ao forno com molho de gergelim, dos quitutes que minha avó preparava”, diz Hatoum. O escritor já publicou um dos seus romances mais famosos, “Dois Irmãos”, no Líbano. Foi em 2002 pela editora Dar Al Farabi, com tradução de Safa Jubran. “A tradução da professora Safa Jubran é excelente”, afirma Hatoum.
O escritor
O livro “A cidade ilhada” reúne contos escritos por Hatoum na década de 1980, outros nos anos 90, e ainda mais recentes, como 2008. Vários foram publicados em revistas, no Brasil e exterior, inclusive do Egito e Omã e em árabe. “Reescrevi todos os relatos e percebi que havia uma afinidade temática entre eles. Algumas narrativas mantém o grau de parentesco com os romances “Dois Irmãos” e “Cinzas do Norte”. O livro foi lançado no começo deste ano pela editora Companhia das Letras.
Três dos seus romances receberam o Prêmio Jabuti: “Relato de um certo Oriente”, que foi seu primeiro livro publicado, “Dois irmãos” e “Cinzas do Norte”. O prêmio é um dos mais valorizados na literatura brasileira. O escritor também recebeu outros prêmios tops no Brasil, como Portugal Telecom, por “Cinzas do Norte”, além de APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Bravo!, pela mesma obra. Hatoum mora em São Paulo e publica crônicas no jornal “O Estado de São Paulo” e na revista digital “Terra Magazine”.