São Paulo – Levar o know-how da medicina brasileira para os países árabes, ajudando-os a suprir suas carências médicas e, ao mesmo tempo, difundindo o nome do Brasil como referência em saúde. O projeto é grande e no comando desse trabalho está um dos principais nomes do setor no País: o oncologista Riad Younes, que nasceu libanês, mas adotou o Brasil como pátria.
Muito antes de virar um nome de referência no tratamento de câncer, Younes chegou ao Brasil como refugiado. Vindo da guerra civil que assolou o Líbano, desembarcou no país no dia 07 de setembro de 1976. "Cheguei no Dia da Independência", lembra. Aqui, livre do conflito, aprendeu português, "língua difícil", diz, e estudou, muito, até entrar na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Hoje é o atual coordenador de Oncologia Cirúrgica do Hospital São José. Anteriormente comandou o Departamento de Cirurgia Torácica do Hospital A.C. Camargo e foi diretor-clínico por duas gestões do Hospital Sírio-Libanês (HSL), onde ainda trabalha como médico cirurgião. Além disso, é professor livre-docente da Faculdade de Medicina da USP.
No entanto, não é a carreira no Brasil o que faz brilhar os olhos do médico de 52 anos, filho de professores e apaixonado por pesquisas. O que mexe realmente com o oncologista é seu projeto de internacionalização da medicina brasileira, com treinamento aos médicos do Oriente Médio, iniciado no começo dos anos 2000 e que, pouco a pouco, vem ajudando a melhorar a saúde na região.
A causa conquistou o apoio de importantes financiadores, como a Câmara de Comércio Árabe Brasileira, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o Ministério das Relações Exteriores do Brasil e o Hospital Sírio-Libanês. "Esse é o projeto dos meus sonhos. Se eu tiver que escolher entre o que eu faço hoje e esse projeto, eu fico com o projeto", afirma, com um sorriso no rosto.
Em entrevista exclusiva à ANBA, Younes conta como o projeto começou, o que já foi conquistado e o que ainda está por vir, como os planos para treinar in loco, por até um ano, médicos palestinos que não podem deixar sua região, uma das mais necessitadas do mundo árabe. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
ANBA – Quando o senhor começou e o que o levou a elaborar um projeto para melhorar a saúde nos países árabes?
Riad Younes – Começou em 2002, 2003. Eu conversei, naquela época, com o superintendente do Hospital Sírio Libanês e contei que depois do 11 de setembro de 2001 os doentes do Oriente Médio que viajavam para os Estados Unidos e outras regiões começaram a não se sentir confortáveis por causa das restrições.
Os árabes eram vistos com medo e eles viajavam com suas famílias. Também ficou mais difícil de conseguir visto. Eles começaram a ter um desconforto. Então eu falei: O Brasil tem uma medicina muito boa, mas sem projeção. E nós, do Hospital Sírio Libanês, começamos a criar um sistema para projetar a medicina brasileira, projetar a qualidade deste hospital para fora das fronteiras.
Eu comecei a entrar em contato, por telefone, com universidades libanesas. O projeto começou muito tímido. Cada vez que ia para o Oriente Médio, eu falava com alguém. Começamos a convidar as pessoas para vir nos visitar.
O projeto começou com quais países?
Com o Líbano mais intensamente porque era onde eu tinha muito mais contatos. Começou nesse ritmo até o Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) ir para o Oriente Médio. Isso dá um impacto diferente porque você consegue falar muito mais rápido com ministros. Aí já tive reuniões oficiais no Líbano, na Síria. A partir daí o projeto tomou outro rumo porque tanto o Ministério das Relações Exteriores no Brasil quanto o do Desenvolvimento e o (hospital) Sírio-Libanês começaram a montar um projeto maior.
Comecei a visitar vários países árabes e a saber das particularidades de cada um deles, para ver onde podíamos ajudar. Eu ia lá, dávamos palestras na área de interesse de cada país, levávamos especialistas, participávamos de congressos. O projeto começou a ter alguma cara. Quando eu virei diretor do HSL, passou a ter um avanço muito mais rápido. Comecei a entrar em contato com várias universidades e hospitais. Tivemos muitos entendimentos com universidades no Líbano, em Beirute, também com universidades da Síria. Tivemos gente que veio nos visitar da Tunísia, tivemos contatos com médicos de Dubai, Abu Dhabi e Catar e eu fui para o Bahrein. Começou a haver um intercâmbio.
Qual o panorama da saúde no Oriente Médio?
Dentro de cada país do Oriente Médio existem "vários países". A Arábia Saudita especificamente tem um hiper sistema de saúde. Eles investiram muito em saúde, criaram bons hospitais, contrataram gente há muitos anos, trouxeram médicos de fora e criaram departamentos e serviços muito eficientes nos hospitais universitários, coisas que não aconteceram em outros países, mesmo tendo dinheiro. Nos Emirados, que também têm muito dinheiro, eles transportam um hospital (conceituado no exterior) para dentro (do país). Eles trazem a marca. No Catar, eles criaram uma universidade, então têm (atendimento) dos dois jeitos. Eles começaram a criar a universidade deles, gerenciada por eles, e ao mesmo tempo convidaram gente de outros países para trabalhar.
E nos países menos ricos?
O Líbano é um país que saiu da guerra, então é deficitário em tecnologia, em alcance da medicina pública ou não pública para a população. Você tem regiões que são servidas em quase nada de medicina adequada. A maioria dos doentes tem que ir para Beirute, a capital, para se tratar. Há uma falha, uma defasagem na qualidade médica entre a capital, as grandes cidades e o interior. E 90% da área do Líbano é chamada de interior. Ali não dá para fazer nada, para tudo é preciso ir para os centros grandes, o que é uma tristeza para a maioria da população. As pessoas menos favorecidas são as que têm que gastar mais para ter acesso à saúde.
Como o Líbano, tem a Síria, Jordânia, Tunísia. A Palestina nem se fala, nem isso tem. Nestes outros países, todos têm acesso à saúde na capital, mas na hora que você sai dez quilômetros, 15 quilômetros da capital, aí cai tremendamente o acesso à medicina adequada.
Como o Brasil pode ajudar estes países que não têm disponibilidade de capital?
Recentemente me tornei diretor da Câmara Árabe e, com ela, a abrangência do projeto aumentou. Agora, eu consigo falar com muito mais hospitais e também com o governo (brasileiro) para a gente ver no que podemos ajudar. E podemos ajudar de várias formas.
Primeiro, dá para ajudar no ensino. Há coisas que os hospitais e universidades no Oriente Médio não conseguem ensinar porque eles não têm especialistas naquela área específica. Cada país tem uma necessidade diferente para completar um tratamento. A gente pode pegar pessoas jovens, trazer para cá, treinar e devolver.
Por exemplo, a cirurgia plástica do Oriente Médio tem um nível, a do Brasil tem outro. Você convida cirurgiões-plásticos recém-formados, que vêm até aqui e ficam um mês, dois, melhoram sua qualidade e voltam. Ortopedia, idem, é cirurgia de ponta. A cirurgia cardíaca do Brasil é de ponta. Hospitais como o Hospital do Coração, Hospital das Clínicas, o Sírio-Libanês têm uma qualidade de cirurgia cardíaca, principalmente congênita, que lá eles têm muito pouca. Cirurgia-vídeo de laparoscopia, vídeo-cirurgia, cirurgias avançadas, dá para treinar as pessoas aqui e devolver.
Outro modo é pegar gente experiente que não faz um procedimento necessário por falta de infraestrutura. Transplante de fígado intervivos (de uma pessoa viva para outra), por exemplo, não tem no Oriente Médio inteiro. O Hospital Sírio-Libanês é um dos mais experientes do mundo nisso. Estamos trazendo médicos de lá, já formados, e ajudamos melhorar a infraestrutura. Para isso não é preciso dinheiro, é preciso conhecimento, know-how.
Quando eles forem começar a operar os primeiros doentes, nós vamos ajudá-los. Nós não queremos operar o doente para eles, queremos ensiná-los a operar. Isso já está acontecendo na Síria maciçamente e vai acontecer também em vários outros países.
Quem são os hospitais e entidades envolvidos no projeto?
Quem está maciçamente envolvido nesse projeto são a Faculdade de Medicina da USP, o Hospital do Coração (HCor) e o Sírio-Libanês. Mas todos os hospitais com os quais comentei sobre o projeto disseram que estão às ordens para o que precisar. Eu acho que o Brasil pode se projetar como uma referência em medicina com projetos semelhantes a esse. Aqui no São José, no Oswaldo Cruz, em qualquer faculdade de medicina, os professores estão disponíveis para ajudar.
Tem outro modo de ajudar. Por exemplo, vamos pegar os palestinos. Eles estão em uma tragédia total. Não dá nem para treinar os médicos de lá direito porque há dificuldade para entrar, sair e outras coisas. Então, estamos tentando criar um projeto para fazer treinamento lá. Vamos criar um grupo de médicos e organizar um sistema de treinamento contínuo. Cada médico do Brasil vai lá, fica até quatro semanas, depois volta e vai outro, continuamente, durante um ano. Vamos treinar eles lá, em Ramallah. Isso, devagarzinho, está sendo programado.
Quanto se economiza com o tratamento de um paciente em seu próprio país?
Você pega uma criança palestina ou libanesa e leva para a Europa para um transplante intervivos. Vai ele, o pai, a família, o doador. Esse custo gira entre US$ 150 mil e US$ 200 mil. Se ele faz em seu país, esse custo cai para US$ 40 mil. O governo está gastando esse dinheiro, mas se fizer no próprio país, em vez de um, poderá operar três ou quatro.
O senhor tem uma equipe de médicos montada para os treinamentos?
Hoje temos viajado em dois, eu e o doutor Paulo Chapchap, que é superintendente do Sírio-Libanês. Nós temos ido e voltado, mas quando o pessoal vem treinar aqui, uma equipe grande participa, como anestesistas, médicos de UTI, clínicos, cirurgiões, tem de tudo. São essas pessoas que, depois, vão dar continuidade no tratamento lá. O programa é muito complexo. E tem vários médicos de origem árabe que gostariam muito de ajudar.
Há muitos árabes vindo se tratar no Brasil? Este número está crescendo?
Não é tão comum, mas está aumentando. No Hospital Sírio-Libanês, por exemplo, você tem cada vez mais doentes vindos dos países árabes para serem tratados lá. Tem doentes do Oriente Médio que vêm da Arábia Saudita, Kuwait, Abu Dhabi, Líbano, Síria. O potencial é muito grande, mas esse é um projeto muito lento, nós temos que fazer a nossa parte (de divulgação) antes do pessoal começar a vir.
O Brasil pode se comparar em custos e tecnologia de tratamentos aos Estados Unidos?
Os hospitais de ponta do Brasil não devem nada aos hospitais de ponta dos Estados Unidos. Os médicos são muito bem treinados, os especialistas são de primeiríssima, a tecnologia do Brasil é excelente. O doente que vier do Oriente Médio para o Brasil ou os Estados Unidos não deve ver muita diferença (no tratamento). Mas a diferença vai ser no custo. O Brasil é mais barato. Hospitais como o HCor e o Sírio-Libanês conseguem ter um custo um pouco mais barato que o dos Estados Unidos. Isso pode ser um diferencial também. A qualidade semelhante com o custo inferior pode ser uma porta muito interessante para os doentes internacionais.
Quanto custa treinar um médico?
Hoje nós arrumamos bolsa para todo mundo. A gente consegue bolsa e ajuda dos hospitais (brasileiros), tentamos arrumar ajuda no País e também de indústrias que estejam interessadas. Conseguimos trazer o médico para cá e treiná-los sem custo. Lá (no mundo árabe) isso também acontece. Já tivemos contato com autoridades em Doha, no Ministério da Saúde, e eles têm fundos para ajudar a área de saúde, por exemplo, na Palestina.
Se nós tivermos projetos que passem pelo crivo deles, eles podem financiar. Então, a gente consegue juntar o dinheiro de lá com o know-how daqui e criar um projeto árabe-brasileiro nos países árabes. Isso é possível.
Como o senhor se sente ajudando tanta gente?
É uma maravilha. Esse é o projeto dos meus sonhos. Se eu tiver que escolher entre o que eu faço hoje e esse projeto, eu fico com o projeto. Você chega lá e se sente o máximo. Em uma região que não tem nada, de repente você vai lá, faz um pouquinho e muita gente se beneficia. Tem um impacto em um número muito maior de pessoas do que você fazer algo aqui, em um hospital que muita gente tem acesso. É um projeto muito interessante e muito bonito.